Conheça Calila das Mercês, escritora baiana premiada e curadora da Tenda Paraguaçu na FLICA 2024, que acontecerá em outubro
Yasmin Morais (@yasminescritora)
O aroma do jasmim-do-caribe, o sabor acre do maracujá-do-mato e a textura porosa das folhas que tecem na pele cantigas do Recôncavo Baiano, de uma terra que longínqua e reimaginada, encanta os corações daqueles que nela viveram ou que dela ouviram falar através da literatura. De Jorge Amado à Itamar Vieira Júnior, a cultura desse Brasil profundo, cujas mãos alcançam o interior, a casinha de porta e a tramela dos nossos corações, reverbera e ganha corpo, alma e vento no solo sagrado da literatura.
Número 18
engatinhei em
chão de cimento
vi uma casa de uma única janela ser
ninho de passarinho
quando aprendi a andar, voei
quando aprendi a falar, chorei
vou ali e volto, mainha
voo ali e volto
um dia voo para casa.
(Poema de Calila das Mercês,
no livro Notas de um interior circundante e outros afetos, 2019)
Calila das Mercês, de 35 anos, mulher baiana nascida em “Berimbau”, como a cidade de Conceição do Jacuípe é popularmente chamada, é dessas mulheres que agitam as folhas e escrevem cantigas, nessa conversa matreira e matriarca, com a reminiscência que existe em nós. Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília, mestra em Estudos Literários pela Universidade de Feira de Santana e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Calila atualmente é pesquisadora de pós-doutorado na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, do Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo (IEA-USP), onde atua como supervisora do Círculo-Escrevivência e do Grupo de Estudos em Escrevivência, sob coordenação da escritora e professora Conceição Evaristo.
Calila das Mercês viaja o Brasil em eventos literários com os seus livros: Notas de um interior circundante e outros afetos, publicado pela Padê Editorial em 2019, e o mais recente Planta Oração, pela Editora NÓS, publicado em 2022. Além de sua atuação no cenário literário e acadêmico, estreou neste ano como curadora da Festa Literária Internacional de Cachoeira, mais conhecida como FLICA, a maior do Norte e Nordeste brasileiros. Com o tema “O mundo da literatura em festa”, o evento, que recebeu um investimento de mais de 2 milhões de reais, promete efervescer a cidade do Recôncavo Baiano entre os dias 17 e 20 de outubro de 2024. Dentro de sua programação, a FLICA conta com três espaços temáticos principais, sendo eles a Geração Flica, com curadoria de Deko Lipe, a Fliquinha, com curadoria de Emília Nuñez e a Tenda Paraguaçu, com curadoria de Calila das Mercês.
No embalo das festas literárias e dos novos rumos da literatura brasileira contemporânea, entrevistei Calila das Mercês e, na medida em que a distância nos permite, levei a minha alma para conversar com a sua nesta entrevista para a edição de estreia do novo Impressão Digital. Acompanhe nosso diálogo abaixo.
Impressão Digital: Há algo que costumo dizer com frequência, entre palavras e escritos, acredito piamente que nunca deixamos de ser meninas. A mulher que em si habita, não mata a menina que existe dentro de nós. Calila, fale um pouco da menina que te habita.
Calila das Mercês: Fui uma criança criativa, brincante. Menina que subia na goiabeira, no pé de castanhas, escalava tantas plantas. Aprendi muitas parlendas, trava-línguas, sabia cirandas também, e gostava de cantá-las, e ao mesmo tempo na rádio ouvia e dançava Olodum, Timbalada, Gera Samba e tudo que tocava na época. Em casa tinham vinis de Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, fitas de Edson Gomes, e umas fitas virgens que painho gravava eu e minha irmã falando e cantando o que quiséssemos. Tinha brincadeira na rua com a vizinhança e a “primaiada”. Lembro de ser uma menina que gostava de brincar de escrever rimas e até cantá-las, tudo sem muita pretensão, eu nem sabia o que era poesia, poeta, não sabia que poderia fazer isto quando crescesse. Gostava de brincar de alquimia, eu macerava folhas de alfazema, de hortelã, dizia eu que fazia perfumes. Gostava destas coisas de escrever, sonhava com canetas coloridas, sem nem saber que um dia poderia colorir com qualquer cor, ainda que solitária… ainda que fosse com um único lápis preto. Acho que esta menina me ajuda a não deixar de brincar e de sonhar.

Impressão Digital: Essa menina se mostrou nada timidamente para nós em Planta Oração (2022), sua obra mais recente e semifinalista do Prêmio Jabuti. Quais experiências da infância permanecem? Quais as inspiraram nesse livro-poema-conto?
Calila das Mercês: Nasci e fui criada em Berimbau (Conceição do Jacuípe – BA), que é uma cidadezinha, que hoje tem um pouco mais de 30 mil habitantes, e um pouco mais de 60 anos. E que antes foi Vila de Berimbau, pertencia a Santo Amaro da Purificação, Recôncavo da Bahia. Em Berimbau, cresci numa rua com muitas crianças. E adultos que participavam ali da construção daquela cidadezinha. Tem uma geração da década de 80 que fazia aqueles loteamentos, que antes eram fazendas, serem muito movimentados com brincadeiras, guerra de mamonas, confusão, baleado, pipas, gudes, danças, elástico, bola, tanta criança, tantas vozes. Eram tantas coisas que inauguramos. E não tinha água encanada, sistema de esgoto, cinema, teatro, equipamentos culturais, parques, nem biblioteca pública…
Passados estes anos todos, percebo que muita coisa que existia já não existe, muita gente também não… E tem coisas que não existiam e que ainda não existem. Talvez o que tenha ficado aqui, pensando agora em Planta Oração, que é um livro ficcional, e que em alguns contos faço um trabalho estético e de linguagem, com filetes de invenção de memória, é que a terra, aquela onde está enterrado meu umbigo e o da minha irmã, e alguns de nossos ancestrais, é fértil e me mostra até hoje mistérios. É preciso se movimentar com coragem e com nossa verdade para que a gente mude algumas coisas… e que algumas mudanças demoram de ser visíveis, mas não significa que nada tenha sido feito.
Impressão Digital: Na sua participação como convidada no Festival Literário de Paracatu em 2023, você abordou a importância do plantio, do contato com a terra e da espera em sua história familiar. Calila, como um dos nomes mais proeminentes no cenário literário atual, quais sementes foram plantadas para que você se compreendesse escritora, quais mais você pensa que devem ser plantadas para que esse entendimento chegue a mais mulheres negras?
Calila da Mercês: Yasmin, com sua pergunta lembrei de quando conheci você, a partir do Projeto de Mapeamento e Diagnóstico Escritoras Negras da Bahia, que coordenei em 2017, e que teve muitas mãos e mentes para colocá-lo no mundo. Na época queria conhecer as escritoras, deveria ser uma partilha a todas as pessoas que também deveriam se perguntar a mesma coisa, saber quem eram as escritoras negras da nossa terra, as herdeiras da resistência de um país, de um estado onde começaram as primeiras narrativas de Brasil. Onde tem uma grande quantidade de pessoas negras do país, senão a maior. Projeto onde colocamos um site belíssimo e sensível no ar, mas por falta de investimento e apoio, não tive, de forma individual, como arcá-lo, para manter em curso. Consegui eternizá-lo na minha tese de doutorado, de alguma forma. Embora o site fosse tão maravilhoso. E que depois dele tantos outros projetos vieram a público, tantos outros mapeamentos, escritoras se autodenominando… Bom, acho que estas sementes foram plantadas lá na primeira infância com o reconhecimento de que não fazemos nada sozinhos e que nem colheremos também. Que tem o pessoal que veio antes e tentou plantar de diferentes jeitos até a roça vingar…

Impressão Digital: Nos conhecemos no ano de 2017 por conta do seu projeto de mapeamento literário “Escritoras Negras da Bahia”. Nesses oito anos, muitas coisas mudaram no cenário da literatura baiana e nacional. Como você identifica o papel de iniciativas como a sua no trabalho por uma literatura sobre nós?
Calila das Mercês: Acredito muito na continuidade, na generosidade de passar adiante, de fazer movimentos coletivos, fomentar diálogos, trocas e gerar mais oportunidades. Nem sempre dá para contar com ajuda. Às vezes precisamos criar as tentativas, os espaços que não existem. Hoje estou na academia, ofertando uma disciplina na USP sobre epistemologias negras, participando de eventos pelo Brasil todo pelo Arte da Palavra do Sesc, onde converso com idosos, crianças, estudantes do EJA (Educação de Jovens e Adultos), público geral, falando sobre literaturas, a importância das nossas epistemologias. Estou produzindo literatura, desejando publicar tanta coisa…
E quando falo eu, assim na primeira pessoa do singular, com toda certeza que não faço nada disso sozinha, tampouco, escrevo. Pensando aqui, falei antes sobre a roça vingar… E vingar nem sempre é um jeito ruim de fazer acontecer. Marcelino Freire disse que escreve para se vingar, Conceição Evaristo disse que a escrita é uma espécie de vingança. Se vingar é um jeito também de se fazer, de colocar palavras para jogo, para a terra, para o vento, para a vida. É um jeito de mudar de posição. Eu quero que nós, mulheres negras, possamos mudar de posição. A semente é jogada na terra para mudar de posição.

Impressão Digital: Calila, você atualmente ocupa um espaço de destaque na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência da USP, presidida por Conceição Evaristo. O fazer literário de ambas conflui em temáticas que tocam o espaço íntimo em nós; o passado que reverbera no presente, as mãos das mulheres negras que tecem as nossas histórias, a terra e a relva como chão para nossas sensibilidades ditas e não-ditas. Como tem sido esse trabalho?
Calila das Mercês: Ter a oportunidade de atuar ao lado da escritora e Profa. Dra. Conceição Evaristo, sem dúvidas, foi um grande sonho realizado. Ter sido sua supervisionada em um pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo é algo que levarei para a minha vida inteira. Neste trabalho junto à sua Cátedra realizamos muitas atividades, dentre elas vou destacar duas: coordenamos um grupo de estudos com estudantes de mestrado e de graduação, e teve uma disciplina que ministramos juntas para a Pós-Graduação da USP no ano passado, que tinha como base o conceito alcunhado pela professora, “Escrevivência”. Foi um momento de muita felicidade para nós, primeiro pela surpresa de ver quase 200 inscritos de diferentes cursos da universidade, depois de ver suas aulas transbordando. Olhos brilhando e atentos ao que a professora proferia. Foi um momento que tenho certeza que todos levarão para sempre nas suas vidas. Ela é um sonho. E, como parceira de trabalho, só me resta agradecer pela possibilidade de aprender tanto, de poder trocar e sonhar juntas pela continuidade. Desde que participei desta concorrida seleção de pós-doc, sem nem saber que tanta coisa ocorreria, eu tinha ciência do desafio e necessidade de estar neste espaço acadêmico no Sudeste do país. Sem dúvidas é um processo que transformou a minha vida, me fez ver tantas coisas e, apesar dos desafios, me fez acreditar e confiar no sonho. Seguir firme na continuidade, tanto dita pela professora como uma premissa. Um compromisso ético que fiz comigo e com meu pares e ancestrais.
Impressão Digital: Você já morou em Cachoeira, uma das cidades mais importantes do Recôncavo Baiano, banhada pelo Rio Paraguaçu em sua divisa com São Félix. Como a vida em Cachoeira influenciou a sua literatura?
Calila das Mercês: Morei em Cachoeira a partir de 2007, mais ou menos. Fui da segunda turma de Comunicação/Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), ali quando não tinha ainda o prédio do Leite Alves e estudávamos no Inferninho (anexo do colégio estadual). Quem viveu este período sabe do que estou falando. Tantos lugares que nem existem mais, mesmo numa cidade tombada e que preserva tantas coisas. Sobre o processo que é ingressar numa universidade que nasce do sonho e, às vezes, fazer acontecer é bem desafiador. Lembro de ir tantas vezes nas reivindicações, foi uma luta e tanto. Fazíamos disciplinas de radiojornalismo e telejornalismo na FACOM | UFBA. Era um desafio termos câmeras, jornal impresso, práticas… Mas tivemos uma formação generosa, especialmente, quando digo em relação à vivência na cidade. Cachoeira me deu tanta coisa, primeiro que me fez me ver mulher negra, reconhecer a força da minha ancestralidade, espiritualidade, a força da minha palavra e que não andava só. Tem coisas que só vi muito depois e isso tem a ver com Tempo, em respeitá-lo e acreditar nele. Eu escrevi na minha tese, algo que mãe Stella de Oxóssi dizia e que tem em Owe: “Antes de morder veja com atenção, se é pedra ou se é pão”. Não sei, mas Cachoeira me mostrou manejos de plantar que tenho tentado mostrar aos poucos, com cuidado, respeito.
Impressão Digital: Neste ano você foi convidada para ser curadora da Tenda Paraguaçu na Festa Literária Internacional de Cachoeira. A sua história com a FLICA vem de longe, você já esteve como convidada e expositora em mesas. Como está sendo retornar à FLICA neste novo papel?
Calila das Mercês: Fiquei muito entusiasmada em ser nesta edição curadora convidada da Tenda Paraguaçu da FLICA. Ainda mais que participei das primeiras edições como espectadora, convidada, lancei Planta Oração com a presença de amigos e familiares e agora recebi este chamado. São muitas expectativas, porque é um espaço de trocas e que tem muitas nuances, um trabalho que ocorre em conformidade à coordenação e produção do evento também. Penso que tenho uma pesquisa curatorial que dialoga com a comunidade, com o que nos reveste, e que deseja abraçar e convidar a comunidade a participar de perto. O tema desta edição é “O mundo da literatura em festa”, algo que não nos exime de pensar nas questões que nos são caras, mas que nos faz também pensar em tecnologias e fundamentos dos nossos que fizeram a diferença para cá estarmos. Quero ver todo mundo lá. E espero que gostem do que estamos programando. E quero ainda falar muito sobre esta experiência de curadoria, é algo que tenho experimentado e desejo ainda ter mais espaços para refletir. Se tiver alguém aí disposto…

Impressão Digital: Você é uma autora com uma vida acadêmica efervescente. Nessas águas, onde conflui literatura e pesquisa, quais são as suas perspectivas sobre a chamada “nova literatura brasileira”? Você sente que o Brasil profundo finalmente está retornando aos holofotes, que histórias não hegemônicas se erguem na cena?
Calila das Mercês: Bom, eu quero crer muito que isto possa estar acontecendo. Que estejamos vivendo este momento da nova literatura brasileira com holofotes e leituras e partilhas em bibliotecas, escolas, tudo que temos direito e Direito. Ler os conterrâneos Itamar Vieira Jr., Luciany Aparecida, e escritores como Conceição Evaristo, Jeovanna Vieira, Socorro Acioli, Jeferson Tenório, Marcelino Freire, Cida Pedrosa, entre outros, que ficaria aqui por muito tempo listando, me dá gás. Vê-los circulando em muitas mãos e mentes faz eu acreditar que algo está acontecendo em relação aos nossos escritos. Vê-los em ementas, além das livrarias (que também é muito bom e queremos estar presentes). É bom acreditar que nossos livros estão chegando para um público mais amplo, interessado neste Brasil profundo e também ligado nas armadilhas e delírios coloniais que ainda seguem em curso. Este ano temos eleições municipais. Em tempos que vimos livros serem censurados, pensar nos programas de mediação de leituras das escolas, na partilha e pensamentos de expansão por meio da educação, tenho pensado que é um bom momento para juntos fazermos algo transformador.
Impressão Digital: Gostaria de lhe agradecer por ceder esta entrevista. Para finalizar, você poderia compartilhar conosco um trecho de Planta Oração?
Calila das Mercês: água. (aprendi na prática que o que não é nosso a chuva leva. poeira, penas, toques e até alguns pedaços. já perdeu algum pedaço de si quando foi trombada por tempestades e ventanias? tem como sair ilesa? talvez nunca. mas te garanto que depois de alguns arco-íris estaremos mais fortes e resistentes quando tudo passar. sonhar em ser. sombra em um dia de muito sol, lembrança que a estação e o mundo caminharam. ser abrigo é também ouvir a chuva dentro da gente, alimentando a coragem. beber o que fica e passa quando vem a estiagem. se molhar com as gotas que pingam e deslizam no chão, (vi)ver a seiva nutrindo o interno e transformando tudo o que você não pode tocar.) cauleseiva raizraioraizraio terra terra…
Mercês, Calila das. Planta Oração (p. 62). Editora Nós. Edição do Kindle.
Conheça mais do trabalho de Calila das Mercês em suas redes sociais. Se estiver interessado em adquirir o livro Planta Oração, pode acessar o site da Editora NÓS.
_________________
Yasmin Morais é jornalista em formação, atriz, escritora e palestrante. Calila das Mercês foi escolhida para esta entrevista em razão da notoriedade de sua literatura e do profundo interesse da entrevistadora no cenário literário atual.