Os teatros de Rose Lima

“Vou pegar um cafézinho antes de começar, ok? Você quer também?” Uma garrafa de café sempre cheia é mantida na porta da sala de Rose, não por ela tomar demais, mas como um lembrete sobre como a rotina é intensa. No entanto, quando se conhece a diretora, sabe-se que o café é só um complemento para sua energia.

 

Trabalhar por mais de vinte anos na mesma área, tem quem diga que o ofício esgota a pessoa. Não é o caso para Rose Lima, 60 anos, natural de Salvador. A arquiteta, produtora cultural e curadora não se sente cansada da rotina: há 18 anos a frente da diretoria artística do Teatro Castro Alves (TCA) e há cinco anos na curadoria da Casa Rosa, no bairro do Rio Vermelho, explica que não se sente esgotada: “Às vezes tem muita corrida, né? E aí é cansativo, assim. Mas é muito prazeroso. Eu acho que tudo que é prazeroso faz com que o cansaço, as dificuldades e tal, elas fiquem ali, sabe? Meio flutuando”. Quando perguntada sobre a conciliação dos deveres como diretora, curadora, arquiteta, estudos, família e amigos, revela, entre risos: “Olha, eu durmo pouco”.

 

Apesar de estar trabalhando em um pequeno escritório-cubículo, construído no estacionamento do Teatro Castro Alves, ela não deixou a aparência chata do local asfixiá-la. Mesmo considerando “muito feio”, o espaço foi caracterizado à sua maneira: alguns painéis com flyers e cartazes de espetáculos passados decoram estaticamente, enquanto suas roupas, variando grafismos, estampas, texturas e acessórios preenchem os movimentos da sala com sua personalidade.

Consegui conversar com Rose depois da terceira tentativa – entre as reuniões da secretarias de governo, de órgãos da cultura, de setores internos do TCA, a diretora sempre precisa encaixar novas conversas na rotina, algo que se intensificou com o avanço das obras de reforma do teatro. A ansiedade internamente para a reabertura da principal casa de espetáculos do estado é comparável com a do público externo. “As pessoas antes questionavam muito, mas agora que a obra é visível pelo lado de fora, além das visitas educativas, compreendem que estamos em obra”. (Nota: as inscrições para visitação às obras são divulgadas pelos canais oficiais do TCA, quinzenalmente, e as visitas guiadas costumam ocorrer às sextas-feiras).

 

De arquiteta à gestora

 

Filha mais velha de três irmãos, sempre foi estudiosa – “muito caxias” – se formou em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia em 1982. Rose conta que também passou em Administração na Universidade Católica, mas decidiu seguir na federal por vocação. Os amores pela arte sempre estiveram presentes em sua rotina, tanto que se define como fiel fã e seguidora de Lina Bo Bardi e Arilda Cardoso.

 

A gestão cultural só chegaria alguns anos depois, a convite de um grande amigo pessoal, Ruy Cezar (1956 – 2013), que fundou a Casa Via Magia, entidade voltada para educação infantil, o desenvolvimento comunitário e a cooperação cultural. A amizade nasceu do labor: a arquiteta fez a reforma na casa dele. Ela conta que foi ele que identificou seu potencial para curadoria de artes visuais e, assim, deu início a uma trajetória bem-sucedida, a partir do trabalho de concepção do Mercado Cultural, um festival anual com artistas independentes de todo o mundo que agitou Salvador nas primeiras décadas do ano 2000.

 
Formatura de Rose em Arquitetura e Urbanismo em 1982 | Acervo Pessoal

O gestor não tinha vontade de fazer em uma localização tão batida, como o antigo Centro de Convenções, no Stiep, mas em um lugar inusitado. Rose sugeriu fazer no Teatro Castro Alves. Foram dialogar com Theodomiro Queiroz, na época diretor geral do TCA. Foram super bem recebidos, o diretor aceitou fazer parte do plano e logo o TCA ingressou nos espaços do Mercado Cultural.

 

Quase todos os equipamentos culturais da cidade passaram a integrar a programação do evento. Acbeu, Aliança Francesa, Caixa Cultural, além das áreas do TCA: Concha Acústica, Sala Principal, Sala do Coro. Uma rede de espetáculos artísticos de diferentes linguagens.

 

Quando recebeu o convite para ser diretora artística do TCA, Rose já tinha feito mais de 32 exposições com mais de 80 artistas. Anos depois, na primeira reunião que a nova direção do TCA teve com a Secretaria de Cultura, praticamente 90% dos presentes tinham passado pelo Mercado Cultural.

 

A arte viva no maior teatro do estado

 

Nas eleições gerais de 2006, a Bahia seguiu os ventos da política nacional e elegeu o primeiro mandato petista da história para o governo do estado. Jaques Wagner, governador eleito, convida o diretor teatral, dramaturgo e gestor cultural Márcio Meirelles para dirigir a recém-criada Secretaria da Cultura.

 

Em 2003, o então ministro da Cultura Gilberto Gil, mudou radicalmente as relações e atuações do estado brasileiro com a cultura, e Meirelles foi convocado também na alçada de descentralizar e territorializar, valorizando a população e a produção de seus bens culturais. Nesse caminho de ‘inversões’, o secretário convida alguém do próprio universo das artes, cenógrafo com anos de experiência do TCA, Moacyr Gramacho, para ser seu diretor geral. Este, por sua vez, propõe a direção artística à Rose.

 

Ela brinca que foi um golpe: “Logo quando ele entrou, na primeira semana, e me falou que precisava de uma pessoa para trabalhar na direção artística e pensou em mim, porque eu sempre fui apaixonada por Lina e Lina fez o Museu de Arte Moderna no Foyer do TCA (…) e que eu podia pensar em exposições e tal, mas que para isso eu tinha que assumir a direção artística”.

Encontro realizado na Casa Rosa, 4 de agosto 2022, foto de Benedito Cirilo

O preparo do Mercado Cultural ajudou, mas foi necessário um longo empenho em estudos para dirigir um teatro. Não só um teatro, como o maior do estado da Bahia e maior complexo cultural do Norte e Nordeste. Quando Rose entrou, o TCA funcionava em 100% de sua capacidade. Cerca de 500 espetáculos por ano e projetos artísticos em pleno funcionamento.

 

O Teatro Castro Alves é muito único em todo o país, não somente pelas suas características, mas também pelo seu histórico. Cinco dias antes da data marcada para ser inaugurado, em 14 de julho de 1958, o prédio principal do teatro foi destruído por um incêndio e, assim, somente a Concha Acústica foi entregue à população. Após novas obras, o TCA foi inaugurado no dia 4 de março de 1967, com a presença do então presidente, o general Castelo Branco. 

 

Sendo um grande alvo político quando o tópico é a cultura, o Complexo ao longo dos anos se tornou um centro cultural ainda mais dinâmico: três espaços – a Sala Principal, a Sala do Coro e a Concha Acústica – dois corpos artísticos estáveis – o Balé Teatro Castro Alves e a Orquestra Sinfônica da Bahia – e o Centro Técnico, que presta apoio na produção cenográfica e indumentária para diversos projetos. Além disso, passou a abrigar o recém criado NEOJIBA – Núcleo de Orquestras Juvenis da Bahia.

Rose percebeu que precisava velejar na mudança que os ventos sopravam. No começo, um desafio, já que o teatro sempre foi visto como um espaço de elite – era necessário tensionar a democratização da cultura em uma nova escala. Com quatro meses de diretoria, surgiu um dos primeiros projetos da gestão Gramacho – Lima: o Domingo no TCA.

 

A ideia era apresentar espetáculos na Sala Principal ao custo simbólico de R$1,00. “A gente fazia pelas manhãs de domingo, uma manhã de domingo por mês, projeto mensal. Antes era às 10 horas da manhã, depois passou a ser às 11 horas da manhã, com os espetáculos ofertados ao preço de R$1,00 ou 50 centavos, porque não foi permitido que não tivesse meia entrada”.

 

O projeto não passou despercebido, Rose comenta que a reação foi esperada. “Falavam que o povo ia entrar, ia acabar com o teatro, que iam pisar nas cadeiras, que não sei o quê”. Seguiram em frente. Em um período de nove anos (2007 – 2016) , o projeto Domingo no TCA realizou 104 espetáculos, sendo 112 apresentações, alcançando um público de 125.302 pessoas, com uma média de ocupação da Sala Principal de 72%.

Domingo no TCA no Verão de 2024 | Foto: Divulgação

De acordo com a diretora, o projeto provou que o que falta é oportunidade de realmente poder assistir espetáculos e participar da vida cultural da cidade. Ela conta que era perceptível em alguns casos como era a primeira vez de pessoas dentro do TCA. “As pessoas entravam no foyer e falavam ‘e agora?’”. O projeto foi tão importante que inspirou a dissertação de mestrado de Rose, defendida no Pós-Cultura: “Políticas Culturais, Democratização e Acesso à Cultura: O Domingo no TCA”, de 2016.

 

O volume de consumo de espetáculos só cresceu para o TCA. Em relatório da Secult, Márcio Meirelles mostra que, em 2007, o TCA recebeu 320 mil espectadores em todo o complexo, destaque para o aumento de 28,82% na Sala Principal, e registrou 492 apresentações artísticas e/ou eventos, para a Sala Principal e Sala do Coro, que obtiveram aumentos no número de eventos de 17,51% e 25,26%, respectivamente, em relação ao ano anterior. 

A nível de comparação, apenas a Concha Acústica recebeu, entre maio de 2016 e maio de 2017, cerca de 250 mil — informação publicada na coluna de Rose Lima para a revista Outside, da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (ADEMI-BA), em agosto de 2017. A gestora chama atenção para como a economia da cultura move a sociedade. Em apenas um espetáculo na Concha, cerca de 250 profissionais são mobilizados.

O cenário de crescimento seguiu pelos anos, com a cadência e capilaridade para o Complexo TCA, mas a pandemia de Covid-19 impôs uma ruptura drástica e sem precedentes. 

 

Cortinas fechadas

“Um Concerto para o Guarda Roupa” – Vídeo performance da OSBA e BTCA na Sala Principal ocupada pelos figurinos do Centro Técnico

A interrupção das atividades presenciais significou não apenas o fechamento de teatro, mas também a paralisação completa de uma vasta cadeia produtiva. Artistas, técnicos, produtores, iluminadores, figurinistas, bilheteiros – os mesmos centenas de profissionais que eram mobilizados para um único evento na Concha Acústica – viram suas fontes de renda evaporarem da noite para o dia. Para além destes profissionais, os empregos indiretos gerados em cada espetáculo, como vendas de alimentos e bebidas nas entradas, camelôs de diversos produtos, lotações em restaurantes e bares próximos pós-espetáculos foram impactados.

 

Diante do cenário de isolamento, a vida cultural, antes vibrante, migrou, ainda que timidamente e com muitas dificuldades, para o ambiente digital. O esforço foi múltiplo. Rose comenta que durante o período fez esforços para ajudar como conseguia: “Comida só comprava de quem era artista. Era uma forma de poder ajudar. Como eu não perdi meu salário, porque o governo honrou o salário dos servidores, então eu só comprava de artista. Quando tinha live, tinha ingresso, eu pagava o ingresso, sabe? Eu acho que isso é importante, a postura de vida também. É postura política”.

 

Nessa toada, o TCA uniu seus núcleos e produziu para fechar o ano de 2020 “Abraço no Tempo”, na descrição: “Os seus dois corpos artísticos – o Balé Teatro Castro Alves (BTCA) e a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA) – juntam-se a dois artistas atemporais: Caetano Veloso, convidado especial, e o imortal Ludwig van Beethoven, homenageado pelos 250 anos de seu nascimento, estabelecendo um diálogo entre o popular e o erudito no instante do agora”. Tudo foi gravado nos espaços do Complexo, focando nas relações de proporção: a arquitetura e o homem.

Quando retornaram ao presencial, mesmo que de forma mínima, a alegria foi instantânea. O projeto “Voltando aos Palcos”, na Sala do Coro, recebeu diversos artistas e foi o começo da retomada da vida cultural como se conhece. Rose conta que a emoção da volta era visível: “O primeiro foi Lazzo (Matumbi). E foi muito bonito, porque quando só tínhamos nós na mesa gravando e ele fazendo com a banda dele o show e era transmitido pela TVE (…) era muito bacana, porque você via a alegria do artista em poder recomeçar, porque é um recomeço, tudo foi um recomeço. E também o que a própria plateia nos dava de devolutiva. Isso tudo foi muito bonito”. Todos os setores do TCA se uniram para isso: “o teatro todo se uniu em torno disso, para fazer o espetáculo, Aí o Wanderlei, eu me lembro que era diretor do balé, Wanderley Meira ficava de mestre de cerimônias, então todo mundo também adquirindo funções para poder levar à frente o projeto”.

 

Profissionalmente, também não parou durante a pandemia. Rose fez uma especialização em Gestão Cultural: “Da ampliação do repertório poético à construção de equipes colaborativas” ofertado pelo Itaú Cultural em parceria com o Instituto Singularidades. Escreveu os registros sobre a  experiência desenvolvida neste período tão difícil: “TCAemCASA – Programação Artística Virtual em Tempos de Pandemia | 2020”.

 

Expectativa

 

Além das paralisações da pandemia, o Complexo teve um outro episódio recente traumático. Em janeiro de 2023 um incêndio atingiu parte do telhado do prédio principal, mas a ação rápida dos bombeiros evitou estragos maiores e, principalmente, que não houvesse nenhum ferido. Ainda assim, parte da estrutura foi danificada, com necessidade de uma reforma mais pungente. O Governo do Estado da Bahia investiu cerca de R$250 milhões para as obras que estão em curso, com previsão de serem concluídas no primeiro semestre de 2026.

 

A volta ao funcionamento 100% do Complexo é um desejo de todos. Tanto Rose, quanto os funcionários e colaboradores do TCA esperam casa cheia e que a parte social do teatro funcione como antes da reforma – inclusive com seus números expressivos. Quando perguntada sobre quantos artistas ou shows já passaram por suas mãos nestes 18 anos, ela não soube responder, mas trouxe um dado interessante: no auge de atividades e pleno funcionamento, o Complexo recebia movimentação de cerca de nove mil pessoas em um final de semana. “São 5.000 (na Concha Acústica), mais 1.554 (na Sala Principal), mais 176 (na Sala do Coro) você está falando em público. E os 250 que eu já te contei, que passam, entendeu? Ainda tem todas as pessoas que passam aqui pelo teatro, existe uma estimativa de 1.500 pessoas, 1.200 pessoas, passam pelo TCA, mesmo que o TCA seja sem espetáculo. Quem tem 320 funcionários, mas também a Orquestra Sinfônica, o  Balé, o Neojiba, quando a gente estava aqui o tempo inteiro”.


Sobre a expectativa do retorno, Rose pontua que o TCA deveria seguir com uma independência maior. A gestora comenta que é importante para um “equipamento cultural, com uma realização própria dos espetáculos, dos projetos próprios, de tudo o que ele pode, inclusive, estar dando de retorno para a sociedade”. Ela complementa: “Eu acho que essa gestão tem que ser definida com todo o cuidado, porque a gente sabe que hoje o TCA está dentro do chapéu, dentro do guarda-chuva da Fundação Cultural (da Bahia), mas eu acho que ele tem que ter uma maior independência, ele tem que ter uma administração própria, ligada à Secretaria de Cultura, ao Governo do Estado da Bahia, mas que ele possa ter uma gestão mais leve, digamos assim, onde ele possa trabalhar com mais propriedade”. Rose ainda reforça que as missões da Fundação Cultural e do TCA são distintas, sendo a primeira focada nas linguagens artísticas em municípios e territórios. Por isso, acredita que um estudo pré-existente sobre essa autonomia deveria ser implantado.

Visita Obras TCA - Foto: Erickson Araújo/Secult

Sobre os vislumbres com artistas ela não se deixa enganar. Algumas pessoas podem se ludibriar que o trabalho em um lugar assim é glamouroso, mas Rose recorta: “acho bem tranquilo, porque é trabalho. O que eu acho que as pessoas às vezes têm uma ilusão que tudo é glamour. O glamour é do artista, não é (para) nós. Nós estamos nos bastidores, então a gente está fazendo ali tudo para que aquele espetáculo aconteça. (…) (o) encontro entre o público e o artista. É aí que está a beleza da coisa. O que me gratifica muito é ver artistas super famosos, ou não famosos que sejam, que ficam muito emocionados por estarem na Concha.”

 

Durante toda a entrevista, ela não perdeu um raciocínio sequer. Até com as interrupções, voltava de onde tinha parado. Deixa óbvio os motivos pelos quais fazem dela uma gestora cultural eficiente. Ao falar do futuro, Rose, sem pestanejar, revela o desejo de tranquilidade. No mar da Bahia – de preferência.

Rose Lima em estreia do BTCA no Espaço Xisto | Foto: Victor Conegundes
Rose Lima em estreia do BTCA no Espaço Xisto | Foto: Victor Conegundes

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Victor Conegundes é graduando em Jornalismo, estudante/amante de Arte, Cultura, Moda e Estética.

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