Obras de infraestrutura aumentam o problema e geram efeitos climáticos a região. Prefeitura estuda soluções para mitigar os impactos ambientais
Felipe Sena (@felipedisenna) Glenda Morais (@_glenda_morais)
De versos de música a um dos redutos da religião católica e sincretismo em Salvador, a calmaria paira na região conhecida como Cidade Baixa, onde a profusão de alaranjado do pôr do sol e verde do mar salta aos olhos de turistas e até de moradores. Conhecida por belas paisagens, que se assemelham a um quadro, quem passa pela região tem notado mudanças, como a diminuição da quantidade de árvores, resultado de um intenso processo de urbanização e de obras de requalificação na infraestrutura.
A cidade baixa é uma das regiões mais tradicionais da cidade de Salvador. Localizada no sul do município, é a segunda zona com maior taxa de desmatamento da cidade, com menos de 1% da vegetação nativa, em decorrência do intenso processo de urbanização. Esse percentual foi identificado por meio de uma análise que mediu o índice de áreas naturais presentes nas prefeituras-bairros de Salvador entre 1985 e 2019. O estudo foi realizado por Bruno Vilela, professor do Instituto de Biologia da UFBA, além de mestre em Ecologia e Preservação Ambiental.
A realidade do Bonfim
O bairro do Bonfim está integrado na prefeitura-bairro da Cidade Baixa. É um dos bairros mais conhecidos devido à lavagem das escadarias da Basílica Nosso Senhor do Bonfim e à peregrinação no Caminho da Fé, que acontecem sempre no primeiro mês do ano. No bairro, é possível notar a presença de obras da prefeitura que objetivam melhorar a infraestrutura local, mas que ao mesmo tempo influenciam na diminuição de áreas verdes. Essa diminuição na arborização pode ser percebida em localidades como a Avenida Dendezeiros, nome da árvore que dá o fruto usado na produção do dendê.
Essas intervenções no bairro são percebidas por alguns moradores locais, a exemplo da estudante de Psicologia Beatriz Dias. “No Roma até o Bonfim tem a avenida Dendezeiros e eles estreitaram as pistas e alargaram as calçadas, mas eu lembro que antes da reforma tinha mais árvores no local. Esse alargamento da calçada, além de contribuir para o congestionamento, desmatou bastante. Deixou mais espaços para as pessoas passarem, principalmente porque ali é o Caminho da Fé, onde ocorre a lavagem do Bonfim, mas tiraram muito verde, ainda mais no Dendezeiros”, afirma a jovem, de 27 anos.
A estudante conta ainda que sente cada vez mais falta da cobertura vegetal ao passear de manhã com seu animal de estimação e que, como moradora desde pequena, sente os impactos do desenvolvimento urbano no local. “Quando eu saio de manhã percebo que não encontramos uma sombra para se proteger do sol. Antes éramos protegidos pelas árvores e hoje em dia não tem. Eu acredito que o local que tinha mais verde aqui na cidade baixa era o Bonfim. Infelizmente hoje o que se percebe é que a prefeitura vem urbanizando cada vez mais e retirando as árvores, e nós como moradores sentimos os impactos”, acrescenta a estudante.
Já para Samirames Rodrigues, moradora há 29 anos do bairro e comerciante na Praça do Senhor do Bonfim, a solução está na manutenção das árvores mais antigas da região.

“Eu não percebo uma diminuição, mas eu vejo que há muitas árvores que precisam de cuidados. Inclusive tem muitas árvores antigas aqui na região que precisam de manutenção. Eu acredito que, em relação a temperatura do Bonfim, se investir na arborização irá melhorar mais o ar do bairro, melhorar a ventilação, além de trazer ar puro irá proteger mais o meio ambiente”, ressalta a moradora.
Confira abaixo a entrevista com um dos moradores:
Requalificação e desafios urbanos
Recentemente, algumas obras estão em andamento na região entre os bairros do Bonfim e da Ribeira. A reforma na praça do Largo do Papagaio foi proposta pela prefeitura de Salvador e pela Companhia de Desenvolvimento Urbano (Desal), em junho deste ano. O intuito é requalificar o espaço, garantindo a implantação de gramado sintético e árvores frutíferas, além de construir espaços de lazer e quiosques para incentivar o comércio e o turismo local. Hoje esta é uma das maiores praças da Cidade Baixa e também uma das mais tradicionais ao carregar 121 anos de história.
Para alguns moradores como Marlon Chagas, empreendedor e morador do Bonfim, as diversas modificações ocorridas no local contribuíram para a retirada de grande parte da vegetação nativa. “A praça do Largo do Papagaio aqui do Bonfim já foi uma praça mais verde, mas com as construções da prefeitura diminuiu em torno de 50% a cobertura vegetal. Agora já está tendo até outra reforma neste espaço”, afirma Marlon.

Ilhas de calor e alagamentos
Para o empreendedor, a diminuição de áreas verdes também tem afetado o clima na região com o desconforto térmico, causado pelas chamadas ilhas de calor. “Eu venho sentindo que a região da cidade baixa vem ficando bastante quente, justamente pela falta de áreas verdes no local. Eu acredito inclusive que a manutenção e a preservação dessas áreas devem ser da responsabilidade dos moradores e da prefeitura do bairro”, diz Marlon.
De acordo com o especialista Bruno Vilela, a zona localizada no sul de Salvador tem sido afetada ao longo dos últimos anos com o desmatamento, criando uma vulnerabilidade ambiental na região. “Uma delas é as ondas de calor na cidade, o que você percebe de calor em uma região que tem muito mais vegetação natural é muito menor do que em áreas com pouca vegetação”, ressalta.
Segundo Márcia Cunha, assessora da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), responsável por desenvolver projetos junto à Prefeitura de Salvador, localidades da cidade baixa, como o Bonfim, onde há um grande número de Territórios de Interesse Social, ou seja, com diversas construções habitacionais, “a cobertura vegetal é quase inexistente e os espaços públicos, em sua maioria subdimensionados, não comportam arborização, o que se reflete na formação de ilhas de calor e no desconforto térmico”.
Conforme a FMLF, as ilhas de calor têm forte componente antropogênico (fontes de poluição atmosférica causada pelo homem), que resultam da ocupação desordenada e precária do solo.
“Se associam para a sua formação fatores como erradicação das áreas verdes, que inviabiliza a formação de corredores de ventilação natural e são fundamentais para a melhoria do microclima; impermeabilização do solo; verticalização edilícia, bloqueadora das correntes de ar; utilização de materiais de baixo albedo (capacidade de reflexão da luz do sol) em vias públicas e edificações, favorecendo a absorção do calor”, diz o documento do Plano de Bairros de Itapagipe, que engloba os bairros situados na cidade baixa.
Segundo o professor Bruno, além dos problemas térmicos na região da cidade baixa, a exemplo do Bonfim, já são rotineiros os alagamentos em períodos de chuvas fortes, como as que ocorreram neste mês de novembro, reflexo da falta de arborização na região.
“Quando temos menos cobertura vegetal por consequência temos zonas de maior alagamento, por causa das chuvas mais extremas e frequentes. Se não estamos preparados para esses períodos de chuva, espera-se que a cada grau de aumento de temperatura do planeta, dobre tanto a intensidade quanto a frequência de chuvas. Isto está inclusive no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)”, explica.
Diminuição de área natural em Salvador
A cidade de Salvador, nos seus limites urbanos, apresenta cerca de apenas 20% de área natural, o que deixa a cidade muito distante de ser uma das capitais do nordeste com o maior nível de preservação de áreas verdes. Além disso, desde o ano 2000 a taxa de desmatamento no município se mantém no mesmo ritmo, segundo dados analisados pelo professor e mestre em preservação, Bruno Vilela.
“Nos anos 80 para os anos 90 nós tivemos uma perda muito grande de vegetação em Salvador, depois ela reduz um pouco, mas se mantém decaindo em um ritmo relativamente parecido. Quando comparamos esta taxa de desmatamento, não há uma redução nos últimos anos, ao contrário ela se mantém neste ritmo. Se continuar assim, o que se espera nos próximos 20 ou 30 anos é que não tenhamos mais nenhuma árvore em pé em Salvador”, analisa o professor.

De acordo com o MapBiomas Brasil, o município de Salvador, na Bahia, apresenta 26,90% de área não vegetada. Esse sistema utiliza imagens de satélites de alta resolução e também realiza o cruzamento de dados territoriais para medir índices de desmatamento dos biomas brasileiros. Ao realizar uma série histórica de Salvador com a coleta de dados, partindo do ano de 1985 até o ano de 2023, foi possível identificar que a falta de cobertura vegetal se concentra principalmente nas regiões litorâneas e no centro da cidade.

Outro ponto importante é que grande parte dessas áreas com pouca cobertura vegetal pertencem a bairros em situação socioeconômica mais vulnerável. Isso prejudica o acesso por parte da população a um meio ambiente saudável, o que interfere na saúde dos moradores, na qualidade do ar e no saneamento básico daquele local, por exemplo. “Isso significa que tem um bairro inteiro em que a população não tem acesso ao meio ambiente saudável, o que favorece para a desigualdade ambiental dentro da cidade”, afirma o professor Bruno Vilela.
Iniciativas da prefeitura de Salvador

Apesar dos problemas relacionados à aceleração do crescimento urbano, a prefeitura de Salvador tem realizado projetos para melhorar a urbanização, mitigar problemas como as ilhas de calor, além de promover um ar mais limpo, ao passo que avança na infraestrutura.
A exemplo, está a requalificação Centro de Interpretação da Mata Atlântica, no Bonfim, localizado próximo ao antigo Hospital Sagrada Família e à Igreja do Bonfim. Anunciada no ano de 2023, o projeto, feito em parceria com a escola de jardinagem, tem o intuito de realizar o plantio de mudas na região.
O conceito do projeto é ampliar o cultivo de espécimes arbóreos e plantas para o uso no paisagismo da cidade. A ordem de serviço para o início das obras foi assinada pelo prefeito Bruno Reis e a titular da Secretaria de Sustentabilidade, Resiliência, Bem-estar e Proteção Animal (Secis), Marcelle Moraes.
A intervenção tem o intuito de requalificar uma área de 13,8 mil m² do horto municipal na Rua Balden Powell. A obra está em andamento e conta com um prazo de 10 meses para sua conclusão. Além disso, contou com um investimento de R$ 7,1 milhões para a realização.
O que diz a Secis
À reportagem, a Secretaria de Sustentabilidade, Resiliência, Bem-estar e Proteção Animal informou que dentre as ações desenvolvidas em busca do desenvolvimento sustentável em Salvador está o “plantio de mais de 110 mil exemplares da Mata Atlântica desde 2013”. De acordo com o órgão, o plantio de árvores é feito mediante uma avaliação técnica, e inclusive, os cidadãos podem indicar áreas para plantio. “Com a viabilidade, a Secretaria convida o cidadão que fez a indicação para realizar o plantio conjuntamente”, destaca em nota.
Segundo o órgão, entre os pontos avaliados durante a visita técnica estão as áreas de plantio, para verificar as condições do local. “Para ser aprovado há requisitos básicos a serem observados, como quantidade de árvores existentes, espaçamento, acesso para rega, solo em boas condições, histórico do local, inexistência de eventos que produzem danos às mudas, existência de tubulação subterrânea e fiação aérea, pré-existência de viveiro de insetos que podem causar danos às espécies e declividade do solo”, salienta.
Após observação, é feita uma relação de espécies para escolher as que melhor atendem os requisitos das áreas e se adequem melhor aos aspectos do ambiente. “As espécies escolhidas para plantio são exclusivamente de Mata Atlântica e seus biomas associados, como tamanho de copa, floração, disponibilidade de aquisição de mudas, adaptabilidade a cidade, índice de rega e resistência”, ressalta.
Além dessa medida, também existe a criação de viveiros de coqueiros e restinga, para recuperar o verde da orla marítima. “O espaço ecológico do Viveiro de Restinga tem capacidade de produzir anualmente 36 mil mudas das mais diversas espécies”.
Outros exemplos são o plantio de árvores frutíferas no Corredor do BRT e o fortalecimento da educação ambiental. No entanto, não foi informado nenhuma atividade específica voltada para a cidade baixa ou para o bairro do Bonfim.
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Felipe sena é graduando do 6° semestre de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e já fez parte do Petcom. Hoje trabalha com assessoria de comunicação. Meio Ambiente foi uma das editorias em que atuou enquanto esteve no Jornal A TARDE, o que o levou a aprofundar a pesquisa para a produção da matéria.
Glenda Morais é jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estagia no Ministério Público Federal na Bahia (MPF-BA). O desejo em investigar sobre a diminuição de áreas verdes na região da Cidade Baixa surgiu em decorrência do intenso processo de urbanização percebido ao longos dos anos na cidade de Salvador. Com isso, a reportagem buscou compreender os impactos diretos no meio ambiente, no clima e no cotidiano dos moradores locais, escolhendo um dos pontos mais tradicionais da cidade para observar este cenário.