O baiano Hugo Canuto trouxe para os quadrinhos a cultura yorubá e latino-americana
Paula Eduarda Araujo (as.paulae)
Do poderoso Thor, deus do Trovão, no planeta Asgard, aos invencíveis Homem de Ferro, Homem Aranha e os demais vingadores em Nova York, as revistas em quadrinhos ajudaram a construir todo o consumo cultural de uma geração, das bancas ao cinema e o streaming. Mas, no Brasil, a influência que vem de fora sempre pode se tornar algo novo, igualmente rico e poderoso, na cultura local. Foi esse ideal que motivou os primeiros traços e páginas criados pelo ilustrador e quadrinista baiano Hugo Canuto.
O soteropolitano de 42 anos, que desde criança nutre uma paixão fervorosa pelas revistas em quadrinhos e histórias épicas – o que se prova pelas centenas de exemplares e act figures em seu estúdio de trabalho -, é a mente e as mãos por trás das séries de histórias em quadrinhos Contos dos Orixás e A canção de Mayrube.
Parte de uma geração que cresceu imaginando-se ao lado de personagens como o Batman para salvar o mundo, foi na própria linguagem dos quadrinhos que Canuto encontrou a janela aberta para seus desejos mais politizados, de trabalhar a cultura e religiosidade afro-brasileira. Este foi o seu modo de contribuir para o desenvolvimento e conhecimento sobre o que a ancestralidade indígena e africana pode ensinar.
“Sempre gostei de desenhar, eu sonhava em desenhar quadrinhos, mas sempre foi uma coisa muito distante para a minha geração, porque a gente só via nos Estados Unidos, não tinha internet”, diz o ilustrador.
E, de fato, a primeira noção que todo artista brasileiro adquire nos primeiros passos é que, quando se trata de fazer arte, a realidade e os desejos, normalmente, andam bem distantes. Nesse ponto, no momento em que a fatídica pergunta “o que vou ser quando crescer?” ganha mais noção de responsabilidade, é que, para Canuto, a estabilidade, inicialmente, falou mais alto.
A decisão de estudar Arquitetura na Universidade Federal da Bahia (UFBA) lhe daria o poder de unir o útil ao agradável, ter estabilidade e continuar desenhando o mundo, projetando cidades e cenários, porque, se existe um ponto onde a arte e as ciências exatas de encontram no mundo, é na criação de uma nova obra.
Após se formar em arquitetura, em 2012, Canuto ainda atuou na área por mais três anos, conquistou a vida estável que almejava com o trabalho na Conder, mas a inquietação como artista não estava resolvida.
“Estava muito insatisfeito, porque essa parte criativa, autoral e artística, estava sendo engolida”, relata. Então, aos 27 anos, chegou o momento de tomar uma nova direção.
“Não podia chegar nos 30 anos e não ter tentado me realizar com todas essas histórias, todos esses cadernos, personagens e cenários que criei.”
O momento do seu “salto de fé” para se encontrar na arte, por volta de 2014, também foi um encontro com os seus “caminhos espirituais” e de se encontrar na religião do Candomblé, a qual é praticante há cerca de dez anos.
Seu contato com a religião começou “de uma forma muito bonita”, de acordo com Hugo, quando um projeto conjunto do Governo do Estado e da Prefeitura de Salvador para revitalizar a Pedra de Xangô, no bairro de Cajazeiras, o levou a trabalhar mais próximo de comunidades de terreiros candomblecistas.
Canuto enfrenta agora um outro nível de desafio como artista, que é levar suas obras onde elas mais precisam chegar: às escolas e aos terreiros religiosos. Mas tem esbarrado na falta de incentivo, tanto do mercado editorial como do poder público, e na intolerância religiosa.
Motivações
Se no início da jornada, a motivação de Canuto para utilizar a cultura afro-brasileira e latino-americana para a criação dos quadrinhos foi a necessidade de se provar como artista, hoje, o que move sua inspiração é a finalização dos universos de ficção que já criou e dar partida a novos mundos.
O autor adiantou que as referências africanas e afro-brasileiras ainda serão exploradas em suas obras, com a próxima história de super-herói chamada “Orikirby e os zeladores do espaço” – que deve ser lançada no segundo semestre de 2025 –, com referências afro-brasileiras, do sertão nordestino e outros aspectos latinos.
“Minha motivação é pelo fato de que essas culturas, esses universos, ainda não têm a sua riqueza, a sua tradição ou a sua complexidade valorizadas e reconhecidas como elas merecem”
Com um certo orgulho, menciona o fato de seu trabalho ser elogiado pelas cores intensas, que abusam do vermelho, amarelo e azul vibrantes. Cores que, na sua visão, representam Salvador e a beleza dos Orixás, e que ele encontra quando foge do estúdio para lugares abertos, do jeito que ele gosta, para “ver o dia, o corpo do sol” e cuidar da saúde. Afinal, não há coluna que aguente tantas horas sentado, mesmo quando se faz o que ama.
Em paralelo a isso, a criação de Canuto também vem de seus desejos mais politizados: de imprimir no imaginário dos leitores uma realidade que vai além da “neve anglo-saxã”, no caso do Brasil, construída nos fundamentos das civilizações africanas, indígena e nordestinas.
“Temos que fazer o nosso. Meu trabalho chegou nos Estados Unidos porque ele fala a partir da Bahia”, ressalta. Ainda assim, o sentimento é de que ainda há mais a ser feito e chegar a outros lugares para levar os conhecimentos que aguardam nas páginas dos quadrinhos.
No Brasil, Contos dos Orixás já recebeu alguns reconhecimentos marcantes como os troféus Angelo Agostini e o Abebé de Prata, além de ter sido finalista do Prêmio Jabuti 2020. Já nos Estados Unidos, a obra foi adquirida pelo Museu Smithsonian e traduzida para o inglês como Tales of the Orishas, em 2023, pela Abrams Books.
Desenhar quadrinhos transformou a trajetória de Canuto, algo a que ele atribui, em parte, ao destino e, outra parte, à determinação. Ainda assim, o artista se mostra, em suas palavras, realista no que diz respeito ao futuro da literatura brasileira e do mercado de livros, que vem caindo expressivamente nos últimos anos, sem sinais de uma guinada repentina nas próximas décadas.
“Eu sou muito clássico, muito realista. Temos que fazer pelo amor, pelo prazer, porque o quadrinho é uma área muito dura no sentido de trabalho. Todo dia são dez páginas [para desenhar], tem que ter uma disciplina”, afirmou.
Mas as pequenas revoluções diárias aparecem quando, por exemplo, alguns alunos relataram ao artista que usaram o universo de Contos dos Orixás como referência na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2024 , que teve como tema “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.
“O quadrinho ainda é muito subalterno, as editoras ainda são muito ligadas a trazer o empacotadinho de fora, traduzir, botar aqui e não investir na produção de quadrinhos do Brasil. É uma covardia muito grande”, critica.
Enquanto seus super-heróis latinos e afro-brasileiros travam batalhas por seus territórios, ensinam sobre a cura, a natureza, sobre o amor e as lidas da vida, Hugo Canuto também encontrou suas armas para lutar pelo reconhecimento da força que têm essas culturas, contando com o apoio da família e muitas horas ouvidas de podcasts de geopolítica e MPB. O que se pode constatar, até então, é que o autor e seus heróis têm sido bem sucedidos em seus próprios mundos.
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Paula Eduarda Araujo é estudante de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia, atualmente trabalha no site BPMoney na área de economia e escreve sobre o mercado financeiro e política. As histórias em quadrinhos formaram o gosto literário da repórter e fizeram parte de toda sua infância e adolescência, o que motivou a escolha da pauta.