Ao longo de duas noites, acompanhamos os bastidores da preparação de duas drag queens. Elas sobem ao palco para encantar e distribuir glamour
Beatriz Fonseca (@_be.atrix) e Gabriel De Luca (@delucabp)
“[…] independente de qualquer coisa, a gente é artista como qualquer outro artista, a gente não é menos do que ninguém […] ” – Melanie Manson, sobre o sentimento de ser uma artista drag
Entramos sem pedir (tanta) licença nas rotinas semanais de um funcionário público e um funcionário de um cinema, que encontram na arte uma forma de expressão e de renda complementar. Afinal, o mundo drag é caro. Muito caro.
Mas, antes de avançarmos, precisamos explicar: nosso trabalho é uma produção fluida, que mistura formatos para tentar sensibilizar e demonstrar cada detalhe do processo que acompanhamos. Todas as nossas fotos contêm legendas que são partes primordiais para a experiência de imersão neste conteúdo. Portanto, pedimos que, ao prosseguir, clique nas fotos e leia cada uma das legendas. Tem muitas surpresas por lá! 🙂
Nossas personagens são Tyna Vermont, 30 (à esquerda) e Melanie Manson, 32, (à direita) – duas figuras proeminentes dos palcos drag soteropolitanos, que acumulam histórias e quilos de pó de maquiagem durante anos de performance na capital baiana.
E como se dividir as dores e as delícias de uma cena tão diversa e marginalizada não fosse coincidência suficiente, durante as nossas conversas, as histórias de Tyna e Melanie revelaram se entrelaçar de maneira tocante.
Nascer drag
Melanie estreou sua drag há 11 anos, sobrevivendo ao luto da mãe e lidando com o adoecimento do pai. No quarto do hospital e com incentivo de sua irmã nascia Melanie – com a delicadeza do primeiro nome – e Manson – com a fortaleza do sobrenome.
Tyna foi montada pela primeira vez por Melanie, há 9 anos. O nascimento de umas das drag queens mais glamurosas da cena. Pouco tempo depois, em 2019, ela também vivenciou o luto materno. Ela relata que nesse período foi quando se “jogou” e incorporou a arte drag de uma vez na sua vida.
Como todo início não é fácil, as queens tiveram que aprender a se maquiar, a montar os looks, a buscar inspiração. Para Tyna, elas têm “que ser tudo… de produtora, a maquiadora, roteirista e apresentadora… drag sempre tem que ser tudo, tadinha”. E o primeiro contato com esse “tudo” marca até hoje o caminho das duas.
Melanie conta que a primeira drag que ela viu foi Mitalux, uma referência drag de Salvador, que se apresentava no Gs Bar, no bairro de São Caetano. Com muito humor, comparou a sensação de ver uma drag pela primeira vez, como há de saber, que Beyoncé é Beyoncé.
Em Valença, no interior do estado, Tyna afirma ter conhecido o artista local Dalmo Reis, no entanto, ela não entendia o que estava vendo.
“Eu não entendia o que era aquilo, eu não sabia que era drag. Pra mim, sei lá, era um homem de peruca”.
Algum tempo depois, com a descoberta do programa RuPaul ‘s Drag Race (que tende a ser um dos principais ritos de passagem das queens), Tyna afirma que ainda não entendia, mas que amava ver os episódios. A descoberta pessoal só veio anos depois, quando voltou a morar em Salvador e começou a frequentar a boate Amsterdam.
Tyna conta que maquiagem foi um obstáculo difícil e desigual para o seu início, pois não havia muitos tutoriais de maquiagem disponíveis da internet, além de que os tutoriais disponíveis só contemplavam peles brancas: “Não tinha nem tutorial para pele negra, então eu não sabia como adaptar aquela maquiagem para minha pele”.
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No mundo drag há constituição de famílias, onde há o apoio, as dicas, as inspirações estéticas e onde as mais novas podem contar com o apoio e fortalecimento das veteranas para construção da sua história.
Melanie valoriza muito o apoio da sua mãe drag, Ferah Sunshine. Ela reconhece o quanto Sushine foi importante para seu início. Quando não havia muito espaço, ela oportunizou na apresentação em shows, nas dicas, e na acolhida em sua casa.
Tyna recebeu grande ajuda de Melanie, no início, mas sua mãe drag é Ela Vargas, que atualmente vive em São Paulo. Ela conta que sua mãe drag foi uma grande inspiração para seu estilo glamouroso e brilhante.
Apesar dessa influência, ela afirma que não costuma se limitar apenas ao estilo exuberante, com roupas de gala e músicas dramáticas, embora tenha se identificado com isso e se conectado imediatamente.
Estilo e cena
Com os anos de experiência, veio também a sabedoria: “Sendo drag, eu posso ser quem eu quiser. Eu sou exagero, eu não posso me limitar. Porque de certo modo, isso me colocava dentro de uma caixinha, e as pessoas também me liam dentro dessa caixinha”, diz Tyna
Ela afirma que busca muitas referências. Usa o Pinterest como fonte de pesquisa e inspiração de looks e maquiagem, além dos reality shows drags que consome bastante.
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Atualmente uma das maiores inspirações estéticas de Melanie é a cantora Glória Groove, tanto na maquiagem, quanto nas inspirações dos looks. Não tanto nos looks atuais, mas nos trabalhos mais antigos. Melanie diz que seu estilo é “piriguete”, a queen diz que ama desenhar seus próprios looks e muitos deles foram pensados por ela.
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As duas concordam que a cena melhorou muito desde quando começaram, mas divergem quando avaliam o atual cenário. Para Melanie, a cena drag ainda é “uó”, e “tem mais lugares fechando que abrindo”. Já Tyna acha que a sua geração causou mudanças que estão presentes até hoje no reconhecimento da cena.
Tyna almeja um cenário futuro em que os locais disponíveis para apresentação sejam distribuídos pela cidade, onde tenham uma maior diversidade de artistas e público.
Ela diz acreditar que “não há porquê quem está chegando agora achar que só existem os espaços já estabelecidos, já que nós [as drags] somos tudo mesmo, somos capazes de chegar em um lugar e apresentar o nosso projeto… criar um espaço novo também”.
Ciente da sua capacidade pessoal de causar essa transformação, Tyna se vê em um local que permite dar oportunidades.
“Eu não sou apenas por mim, sou por todo mundo que tá aqui. Jamais penso em fazer algo considerando apenas no que vai melhorar pra mim”.
A comunidade em Curitiba é uma de suas referências. “… as meninas de lá são teatrais, inclusive elas conseguiram algo único no Brasil, que foi conseguir uma banca no sindicato dos artistas de lá para drag queens. Então, as artistas drags de lá podem tirar sua carteira DRT”.
Por outro lado, Melanie afirma que – comparado a algumas outras capitais – Salvador vai bem, mesmo achando que às vezes a comunidade LGBTQIAPN+ não se apoia muito.
Ela usa como exemplo o público do Boteco Paulista, casa em que se apresenta todos os sábados no Bairro do Rio Vermelho, em que uma grande parte da plateia é composta por turistas.
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Em Salvador, quatro espaços são considerados os principais “points” para apresentações de queens da cidade inteira. Todos eles localizados em áreas nobres ou centrais da cidade, como o Rio Vermelho, a Barra e a Avenida Carlos Gomes.
De acordo com o pesquisador do PPGNEIM | UFBA, Cesar Gabriel Belem (autor da dissertação de mestrado “Procuram-se bonencas pretas em Salvador: dissidências das drag queens negras de Salvador-Bahia”), a falta ou dificuldade de acesso à políticas públicas, como um meio de transporte eficiente, dificultam a vida de algumas drags queens para chegarem nos espaços onde fazem as apresentações. Principalmente as drags queens negras oriundas de regiões periféricas da cidade. Além disso, há também a violência e a homofobia.
Mas nem Melanie, nem Tyna pareceram se preocupar muito com isso. Pareciam lidar com muita facilidade.
“Não existe isso no meu show, eu chego logo dando um fecho, colocando esse povo no lugar deles… Falo que no meu show a gente até trata hétero como pessoas normais”.
Apesar dos shows dessas artistas ocorrerem semanalmente, esses locais ainda recebem um público “desavisado”. Para Melanie, é mais um reflexo do abandono da comunidade. “O público acaba sendo mais de turistas, né? O soteropolitano não aparece.”
Músicas preferidas
A identidade e personalidade também ressoam durante as nossas conversas. As músicas não só nos davam pistas da identidade de cada uma, mas serviam quase de explicação para cada escolha na hora de se produzir.
“Eu faço muito a minha vibe, que é pop né?! Basicamente o pop farofa, o que tá na moda: Glória Groove, Pabllo Vittar, Anitta. Mas eu também amo fazer o pop old, Britney Spears, Beyonce, JLO, Rihanna, Jessie J, as grandes divas pop. E alterno isso com MPB e rock, que são gêneros que eu também gosto” – Melanie
O gosto pessoal ajuda a construir a Melanie que vai performar naquela noite, mas a atenção e o cuidado com o público são fatores ainda mais fortes.
“Quando eu entro no boteco, eu analiso… eu analiso muito o público para seguir meu show, sabe? Vai no feeling. Eu vou no feeling da galera.
– Você aceita sugestões do público? – perguntamos:
– O tempo todo. O boteco não é um palco. É um corredor entre as mesas. É muito público, o show inteiro. Porque eu tô entre as pessoas, sabe? Eu amo fazer show no boteco por conta disso. O Vinícius (dono do espaço) falava assim: ‘vamos colocar um palco aqui’, e eu respondi: ‘bote no seu cu, eu te proíbo. Fui a primeira drag desse lugar, capinei para outras chegarem. Você não vai botar palco aqui”.
Tyna já delimita de maneira mais restrita seu estilo: É uma amante do drama.
“Eu amo performar Whitney Houston, Madonna. Músicas mais emocionais, em que posso explorar de fato a linguagem, a expressão facial, a expressão corporal, não necessariamente a dança. Afinal, dançar todo mundo dança, mas interpretar…”
Contudo, isso não a impede de experimentar o novo. Tyna diz buscar o novo o tempo todo, a refrescância de um artista recém-chegado, a novidade técnica apresentada por alguém que acabou de chegar na cena.
“Eu saio montando mil playlists, estou o tempo todo pensando […] eu também analiso o espaço em que eu vou fazer o show”.
Reality & concursos
Melanie e Tyna estão juntas em um novo projeto chamado Cine Watch Party Salvador, no qual atuam como host queens, acompanhando a segunda temporada do programa Drag Race Brasil, reality show em que diversas queens disputam o título de drag superstar do Brasil. Uma das participantes da temporada é DesiRée Beck, queen baiana da cidade de Irecê e da mesma geração de Melanie e Tyna.
“Ver DesiRée no reality está sendo incrível. Eu vou fazer 12 anos de drag, ela vai fazer 11. Eu vi ela nascer, eu estava lá no primeiro concurso que ela participou…” – Melanie
“DesiRée é muito importante na minha construção como artista. Não sou amiga pessoal de frequentar a casa dela, mas foi através de um dos concursos que ela promoveu que eu pude me envolver mais na cena. Inclusive, o primeiro concurso que participei foi o TNT Drag, promovido por ela […] É uma artista muito importante para as pessoas da minha geração. Acho legal ter ela lá, sempre foi o sonho dela”. –Tyna
“A minha formação e a formação de muitas drags de Salvador se deu através dos concursos. Depois da pandemia, isso meio que ‘morreu’. Os concursos eram importantes porque ajudavam bastante no desenvolvimento como artista, especialmente para quem estava começando”. – Tyna
Apesar de atualmente não participar tanto de concursos, Tyna foi uma das seis queens selecionadas em todo o Brasil para integrar o Drag Star Cruise 2025, em janeiro deste ano.
Já Melanie é criadora do projeto Nasce Uma Drag, que oferece oportunidade para pessoas que sempre tiveram vontade de se montar, mas nunca tiveram essa possibilidade, iniciativa inspirada pelo desejo de Nádia, sua esposa.
“A gente tenta entender qual a inspiração da pessoa […] geralmente eu convido outra drag para participar. A pessoa chega desmontada, a gente apresenta, conta como é a experiência, leva isso para o show e, enquanto o show acontece, a pessoa vai se maquiando. A ideia é que o público veja a transformação” – Melanie
Performance
Clique nas fotos e confira as legendas:
Para Melanie, a escolha do look vai além da estética. É uma extensão do humor do dia, do contexto do evento e até da energia da convidada ao lado. Cada apresentação vai depender do ambiente.
“As vezes eu defino o look pelo mood, ou muitas vezes é pela convidada que vai estar se apresentando comigo” — Melanie
Naquela noite, Tyna pensou em uma playlist especial. Afinal, era a comemoração dos seus 30 anos, e ela quis revisitar músicas que ouviu na adolescência. Lembrou com saudade que Cazuza foi um dos artistas que marcaram essa fase. Mas, ainda assim, seu olhar preocupado sempre espera no outro a vontade de ser incluído.
“A gente abre o espaço do show para o pessoal se sentir no show […] viver o momento deles, caso queiram dedicar uma música especial para alguém“.
Nossa motivação para desenvolver essa pauta surgiu do nosso amor pela fotografia e pelo universo LGBTQIAPN+, com o intuito de retratar, de forma íntima, o processo de transformação drag.
Beatriz Fonseca é do Recôncavo Baiano, bissexual e estuda Jornalismo na FACOM. Estagia no INAFF- Instituto Nacional de Assistência Farmacêutica, onde faz assessoria. É apaixonada por cultura – literatura, música, cinema e fotografia. Bon vivant, acredita no mistério das coisas.
Gabriel De Luca é de Salvador, bissexual e estudante de Jornalismo na UFBA. Estagia na Rádio Sociedade da Bahia. Gosta muito de música, videogames, filmes e do Esporte Clube Vitória. Namora Liz e tem um gatinho preto com o nome Ônix Matuê (longa história…).






