Os dilemas da rotina no telemarketing

Relatos de operadores e análises de especialistas mostram como pressão por metas, controle excessivo e falta de pausas afetam uma profissão que conecta empresas e clientes, mas que é mantida por rostos e sonhos do outro lado da linha

 

Ana Clara Batista (@anaclarasbatista) e Bia Nascimento (@bianascimentocj)

 

No balcão das centrais de atendimento de empresas de telemarketing Brasil afora, vozes se acumulam em filas invisíveis e o tempo parece correr em compassos próprios. São nestes espaços que cerca de 1,4 milhão de brasileiros batem ponto todos os dias, segundo dados da Associação Brasileira de Telesserviços (ABT). Juliana*, moradora de Salvador e funcionária da empresa Konecta, faz parte deste montante. Entre chamadas sucessivas e metas que não esperam, ela descobriu um ambiente que desafia o corpo e a paciência. “É estressante e cansativo, tanto fisicamente quanto mentalmente”, afirma, mencionando a pressão cotidiana entre supervisores e atendentes, e atendentes e clientes.

 

Mesmo cumprindo um turno de pouco mais de seis horas por dia, a repetição de tarefas e a postura praticamente imóvel afetam o dia a dia de Juliana. “Achei que seria mais fácil, pois são seis horas e vinte minutos sentada”, diz. Embora precise cumprir apenas uma venda diária, a jovem relata que o índice é difícil de atingir e gera cobrança intensa. “A maior pressão é por metas. Pode até rolar uma exclusão por parte do superior se a pessoa não vender muito”, revela.

 

Juliana afirma tentar evitar interromper o trabalho para não ser cobrada. “Tento tirar todas as pausas o mais tarde possível e evitar muitas pausas para ir ao banheiro, pois eles cobram bastante essa parte fora do intervalo pré-determinado”. Questionada sobre o tempo que tem para as necessidades básicas, ela responde: “Dez minutos, no máximo”.

 

Se do lado dos operadores o cotidiano é marcado pelo cansaço, pela pressão e pela sensação constante de cobrança, do lado institucional os sinais de alerta também se acumulam. A advogada Keila Morais, que possui experiência na área do direito trabalhista, e o médico do trabalho Raimundo Pinheiro, membro do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia, descrevem um cenário desafiador dentro dos teleatendimentos.

 

Keila Morais reforça que o telemarketing, apesar de seguir a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), possui regras específicas justamente por ser uma atividade desgastante. Ela explica que a Norma Regulamentadora 17 (NR-17), que rege sobre ergonomia em locais de trabalho, estabelece uma jornada especial de seis horas, porque se trata de “uma atividade muito repetitiva, que exige um alto nível de atenção e causa grande desgaste físico e emocional”. Na prática, porém, ela afirma que a regra é amplamente descumprida. “A principal irregularidade é o excesso de jornada”.

 

Segundo a advogada, esse descumprimento vem acompanhado de outras práticas abusivas: “Há restrição de pausas para ir ao banheiro, beber água ou fazer lanche”. Quando a cobrança é pública e vexatória, ela aponta, “isso configura assédio moral”.

 

Simulação de Juliana no ambiente de teleatendimento Foto: Gemini 3

 

A dinâmica que estrutura o setor

 

O médico Raimundo Pinheiro explica que a categoria concentra dois riscos: a natureza altamente controlada do trabalho e a pressão por produção. Essa combinação, diz ele, sustenta um ambiente que favorece adoecimentos psicológicos recorrentes. “Burnout é comum. Para haver burnout, tem que existir um ambiente tóxico e opressivo”, diz. Entre os sintomas mais comuns, conforme cita estão: “Humor deprimido; tristeza; pensamentos negativos; sensação de cansaço; perturbações do sono; modificação do apetite com perdas ou ganhos de peso; uso excessivo de bebidas alcoólicas e outras drogas”.

 

Sobre as novas tecnologias empregadas nestes ambientes de trabalho, a advogada Keila alerta que o monitoramento digital, quando usado de forma abusiva, também pode se transformar em uma forma moderna de assédio. Isso porque muitos sistemas medem cada segundo de pausa, expõem rankings de desempenho e registram cliques e movimentos.

 

Júlio César é estudante de jornalismo e atuou na empresa Atento S.A por seis meses, no ano de 2024. Trabalhando na escala 6×1, ele tinha direito a uma folga fixa aos finais de semana, no sábado ou domingo. Sobre as pausas da intrajornada, Júlio afirma que elas eram obrigatórias e já eram pré-definidas, sendo duas de cinco minutos para ir ao banheiro e uma maior, de dez minutos, para o lanche.

 

Para ele, o fato das pausas já serem pré-definidas era prejudicial para o desempenho do colaborador: “Durante as pausas, o seu computador bloqueia, e isso te obriga mesmo a tirar a parar. A pausa era meio ruim porque às vezes você estava em ligação e, do nada, ela parava”.

 

O estudante também explica que evitava, ao máximo, tirar intervalos fora dos momentos pré-determinados. “Nosso desempenho era avaliado também pela quantidade de pausas que a gente tirava durante o dia. Quanto mais iríamos, por exemplo, ao banheiro, mais a nossa nota abaixava, porque eles entendiam que você estava produzindo menos”.

 

No geral, ele descreve sua experiência como satisfatória, no sentido de que era a única possibilidade de emprego com carteira assinada que conseguia conciliar com a faculdade, e que oferecia alguns benefícios, como vale-alimentação, plano de saúde e assistência odontológica. Contudo, deixa claro que não considera como um bom lugar para trabalhar por muito tempo. “É um ambiente adoecedor, por conta das cobranças. Não voltaria a trabalhar com telemarketing, só se fosse um caso de extrema necessidade. Não quero mais isso na minha vida e nem desejo isso para meu pior inimigo”.

 

No ano de 2017, a empresa Atento S.A foi condenada a pagar R$300 mil em indenização por danos morais e coletivos, por não garantir condições dignas de trabalho aos seus funcionários. Com a sentença, a empresa estaria obrigada, por exemplo, a conceder pausas de dez minutos a cada 90 minutos trabalhados, segundo publicação do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA). Keila Morais explica que condenações como esta têm forte caráter pedagógico, mas que os efeitos costumam ser momentâneos. “Com o tempo, muitas práticas acabam voltando, apenas disfarçadas sob novas formas de gestão ou controle”, afirma.

 

Para o médico do trabalho, o ponto crítico é a formação das chefias: “O líder que somente sabe cobrar metas ‘já foi’, não terá mais espaço no ambiente de trabalho. O líder atual precisa, para o bem de todos – trabalhador, empresa e dele mesmo – saber ‘lidar com gente’, perceber os sentimentos do seu liderado e estar preparado para ‘discutir a relação’”, enfatiza Raimundo Pinheiro. Ele finaliza reforçando que prevenir adoecimentos exige perceber mudanças psíquicas e comportamentais e suspender os fatores de exposição antes que o quadro se agrave.

 

Da venda de pastéis à multinacionais

 

Juliana, Júlio César e mais de um milhão de outras pessoas fazem parte de um sistema inaugurado séculos antes de seu nascimento. A pesquisa “Telemarketing ativo: estudo dos custos das chamadas excessivas”, realizado no Centro Universitário Unidade de Ensino Superior Dom Bosco por Ana Rute Miranda como defesa do curso de Ciências Contábeis, aponta que o primeiro relato que se tem conhecimento de uma venda feita por teleatendimento no mundo ocorreu em 1880, quando um pasteleiro alemão também passou a oferecer o alimento para os clientes por telefone. Cerca de um século depois, isso passou a ser conhecido como “telemarketing”.

 

No mesmo período, durante a segunda grande crise do petróleo nos anos 80, momento de instabilidade econômica global, as empresas passaram a enxergá-lo como uma ferramenta eficaz para alcançar mais clientes sem a necessidade do deslocamento do vendedor. As filiais de multinacionais, operadoras de telefonia e cartão de crédito foram as pioneiras.

 

Nos anos 90, em um momento de modernização tecnológica, também foram criados os call centers e só nos anos 2000 o atendimento ao cliente também passou a ser conectado por e-mail, chat online, SMS e até mesmo redes sociais. Assim, o telemarketing passou a ser dividido entre receptivo (canal disponibilizado para o cliente resolver ocorrências) e ativo (canal destinado ao contato feito para ofertar produtos ou serviços).

 

Desde então, as empresas também apostaram em terceirizar os teleatendimentos, o que fez que não fosse mais necessário que montassem estruturas próprias, e sim, contratassem serviços mais baratos de empresas especializadas. A evolução da tecnologia operacional também possibilitou que as discagens fossem feitas de forma automática, sem a necessidade que o atendente o fizesse de forma manual.

 

Hoje, a Inteligência Artificial permite que chatbots realizem atendimentos e até ofereçam soluções
Foto: Reprodução/Pixel Telecom e Magazine Luiza

 

Organização da categoria

 

O Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações da Bahia (Sinttel Bahia) realizou uma pesquisa que mostrou que 72% dos profissionais do teleatendimento no estado relataram já ter sofrido assédio moral dos gestores. “Na Atento [empresa de teleatendimento] nós temos uma briga maior porque tem uma quantidade maior de trabalhadores, então o assédio moral é muito latente nesta empresa”, revela Marcos Pires, dirigente do sindicato.

 

O representante ainda explica que outras organizações também impulsionam uma batalha da categoria: “Na Contax, tem falta de pagamento de salários, falta de pagamento de benefícios”. Além disso, novos operadores já não são contratados com o benefício de um plano de saúde. “A empresa alega que devido à recuperação judicial, ela não teria condições de se manter”.

 

Marcos Pires entende que, atualmente, grande parte da categoria é composta por jovens que são atraídos pela carga horária e flexibilidade do setor.

 

Foi assim que, após ingressar na Universidade Federal da Bahia, uma jovem de 20 anos viu o setor como uma boa oportunidade para aquele momento. Ela se candidatou para trabalhar na Atento, e passou. “Eu queria uma outra perspectiva de como entrar no mercado de trabalho como estudante da UFBA, e o único emprego que tinha uma carga horária mais flexível era no telemarketing. Apesar de ser 6×1, a gente trabalhava seis horas por dia”, conta.

 

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) estabelece que a carga horária máxima de profissionais do teleatendimento deve ser de seis horas ao dia, de forma a compensar a rotina desgastante dos operadores.

 

Ainda assim, Maria* sentiu uma grande carga de estresse passar a sobressair sobre sua vida com o início da rotina: “Eu atendia os clientes, eu não ligava para ninguém. Mas já eram clientes que chegavam lá insatisfeitos com alguma demanda do atendimento da Vivo [telefonia contratante do teleatendimento da Atento], então eles já chegam estressados, alguns xingam a gente”.

 

Sendo a Vivo uma das maiores empresas de telefonia do Brasil, Maria recebia ligações de todos os estados: “Os clientes reconheciam o meu sotaque, de Salvador, então já tinha aquele ataque: ‘Você é baiana’’’. Para ela, a pior parte envolvida no trabalho era a cobrança excessiva dos gestores a partir das metas que os operadores são submetidos por meio de uma tabela de resultados chamada “feedback”. Ao exemplo, os funcionários do atendimento receptivo, assim como ela, deviam ficar, em média, oito minutos em uma ligação. Conforme esse tempo passava, já era descontado do resultado mensal.

 

Maria explica que dentro da empresa existe uma tabela de feedbacks para contabilizar todos os horários dentro da rotina do trabalhador. “‘TP logado’ é o tempo que a pessoa está trabalhando. ‘TP particular’ são os intervalos garantidos por direito, duas de 20 minutos para jornada de seis horas, e uma hora para a jornada de oito horas. ‘Atendidas voz’ são a quantidade de ligações que foram atendidas no dia”.

 

“Tabela de feedbacks” mencionada por Maria
Foto: Acervo Pessoal

 

“Se o cliente desligar na sua cara, antes de você finalizar, você é penalizado. Cada cliente que desligasse na sua cara, você teria que atender mais dez clientes para conseguir repor esse número no resultado”, desabafa.

 

 

A reportagem do Impressão Digital solicitou à Atento e Konecta um posicionamento a respeito do que informaram os entrevistados, porém, até o fechamento da edição não se obteve retorno.

 

Teleatendimento saudável: uma missão possível?

 

“É possível, sim, ter um ambiente mais saudável, mas para isso a gente precisa de fato olhar para um básico que muitas vezes não é cumprido”.

 

É o que acredita Bianca Reis, psicóloga da área analítica, da teoria do esquema e da neuropsicologia. Após anos atendendo trabalhadores e trabalhadoras, inclusive do setor do teleatendimento, ela percebeu que parte das questões de depressão, Burnout e ansiedade vêm de um ambiente de trabalho hiper controlado: “Muita gente não tem nem janela para que não se distraiam, não tenham conexão com o mundo externo. A pessoa precisa manter sempre o mesmo tom de voz, a mesma linha de atendimento, a mesma emoção. No final do dia, para onde vão as emoções que essa pessoa reprimiu, entre uma raiva, uma tristeza e uma frustração?”.

 

Entre o início e o fim de uma ligação, um cliente calmo e outro mais inconformado, uma profissão que conecta seres humanos com empresas e seus produtos, mas atrás da linha, rostos e sonhos dão nome à profissão. “Primeiro passo: enxergar aquelas pessoas como seres humanos, como indivíduos que têm as próprias necessidades. Esperança com atitude e com ação”, adverte Bianca.

 

 

*Os entrevistados estão identificados por um prenome fictício a fim de proteger as respectivas identidades. Enquanto Juliana* ainda é colaboradora da organização, Maria* passa por um processo judicial com a empresa referida.

 

Ana Clara Batista – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, atualmente é estagiária na TV Bahia, com atuação direcionada à redação do G1 Bahia, onde dedica-se à produção, apuração e atualização de matérias para o portal, além de produção e edição de conteúdo digital.

Bia Nascimento – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, atualmente é estagiária na TV Bahia, onde atua na produção, reportagem e edição do Parceiros do Bahia Meio Dia, quadro especial do telejornal veiculado aos sábados. Além disso, atua na produção dos telejornais diários da emissora. Bia também é fundadora e editora-chefe do portal Entrepontos.

 

A motivação para esta reportagem surgiu da observação dos desafios observados na rotina laboral de amigos, familiares e conhecidos que estão ou já atuaram no setor. Uma profissão pouco valorizada, mas secular e responsável pelo emprego de diversas pessoas.

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