Atropelamentos de corredores reacendem debate sobre educação no trânsito

Com 43 mortes registradas até setembro, Salvador enfrenta desafio de assegurar a integridade de quem pratica atividades físicas ao ar livre.

 

Isabel Queiroz (@belqueirozs) e Isabella Mota (@isabellaamota_)

 

A busca por um estilo de vida saudável e a popularização dos esportes ao ar livre tem levado milhões de brasileiros às ruas para correr. Só em 2024, o Brasil se tornou o segundo país com mais praticantes de corrida no mundo, com mais de 19 milhões de atletas, segundo o relatório anual do Strava. Em Salvador, o que deveria ser sinônimo de bem-estar tem se transformado em risco.

 

Entre janeiro e setembro de 2025, foram registradas 375 vítimas de atropelamento na capital baiana, de acordo com dados da Superintendência de Trânsito de Salvador (Transalvador), enviados a pedido da reportagem. Deste total, 43 pessoas não resistiram aos ferimentos, entre elas a policial rodoviária federal aposentada Martha Maria dos Santos, que morreu 10 dias após ser atropelada enquanto corria na Avenida Paulo VI, no bairro da Pituba. 

 

Martha Maria dos Santos, de 60 anos, era policial rodoviária federal. Foto: Reprodução

O caso se soma ao de outros corredores atingidos recentemente nas ruas da capital baiana, como o atleta Emerson Pinheiro, que perdeu uma das pernas após ser arremessado por um carro em alta velocidade na mesma região. Ele se preparava para a maratona de Buenos Aires, na Argentina.

 

Emerson Pinheiro, de 29 anos, teve a perna amputada após ser atropelado na Pituba. Foto: Reprodução

Em 18 de outubro, o administrador de empresas Edmilson Ferreira da Silva Filho, de 45 anos, foi atropelado enquanto corria no Centro Administrativo da Bahia (CAB), em Salvador. O motorista atingiu o corredor e, em seguida, colidiu em um ônibus. Tanto o condutor quanto a vítima foram encaminhadas ao Hospital Geral do Estado (HGE). Ferreira, como é conhecido, pratica a corrida desde 2002. 

 

“Nós tínhamos combinado de correr no sentido contrário [do fluxo] dos carros, justamente para evitar qualquer tipo de problema. No final do percurso, a gente circulou todo local do CAB onde é apto para treino aos finais de semana, e já ao final do treino passando pela parte que é indicada para atletas e ciclistas, de repente eu vi esse carro em alta velocidade vindo em minha direção, a última coisa que eu lembro foi o momento que bati a mão no capô”, relata Ferreira.

 

O atleta ficou 14 dias internado, após a realização de uma cirurgia bucomaxilofacial e na bacia. Devido ao período de recuperação, ele ficará 12 semanas acamado. “Hoje fica a experiência e o momento vivido, e eu acho que deveria haver pelo menos mais fiscalização aos finais de semana dos locais que é propício para o treino e que havesse um isolamento mais adequado para isso”, enfatiza.

 

“Antes do episódio, eu já costumava me precaver correndo sempre com a visão frontal dos carros, com peças de roupa com cores nítidas e em locais destinados a essas práticas, mas nem toda essa combinação foi suficiente para evitar o acidente. Particularmente, ainda não tive a coragem de voltar a correr no CAB, que foi o local do acidente. O dano psicológico é algo que leva tempo a ser revertido”, lamenta João Vilas Boas, que presenciou o atropelamento do colega de corrida. 

 

Edmilson Ferreira, de 45 anos, é administrador de empresas e pratica corrida desde 2002. Imagem: Arquivo Pessoal

 

Ao menos três das 10 avenidas que concentram os maiores números de atropelamentos na capital baiana têm calçadas precárias e travessias escassas. Com um alto fluxo de veículos e velocidades de até 80 km/h, corredores urbanos como as avenidas Antônio Carlos Magalhães, Luís Viana Filho (Paralela) e Mário Leal Ferreira (Bonocô), refletem um modelo de cidade que privilegia os carros em detrimento da segurança de quem se desloca a pé ou pratica esportes nas ruas. Dados do Departamento Estadual de Trânsito da Bahia (Dentran-Ba) mostram que a frota de veículos em Salvador é de 1.158 milhão, sem contar os carros da Região Metropolitana que circulam diariamente nas vias do município.  

 

De acordo com um levantamento da Transalvador, a Avenida Afrânio Peixoto (Suburbana), no Subúrbio Ferroviário, lidera o ranking de atropelamentos com 21 ocorrências entre janeiro e setembro. Em seguida, aparecem as avenidas Octávio Mangabeira (16), Antonio Carlos Magalhães (15), Vasco da Gama (9) e Paralela (9). Também figuram entre as 10 vias com maiores índices a Rua Silveira Martins (8), as avenidas Ulysses Guimarães (7), Aliomar Baleeiro (7), Bonocô (7) e Gal Costa (6).

 

Confira o mapa interativo: 

 

 

O superintendente de Trânsito de Salvador, Diego Brito, explica que os horários de pico, no início da manhã e no fim da tarde, concentram a maioria das ocorrências. Os atropelamentos acontecem com mais frequência em corredores de grande fluxo e cruzamentos sem estrutura adequada para a travessia de pedestres. 

 

“Identificamos vários fatores convergentes que explicam parte desse aumento. Podemos citar o excesso de velocidade em corredores urbanos e vias arteriais e a distração de pedestres e motoristas, como o uso do celular, por exemplo, como dois dos principais fatores”, explicou. 

 

Diante da repercussão de casos de atropelamentos envolvendo atletas, a autarquia afirma ter medidas emergenciais em andamento e ações de médio prazo para garantia de segurança dos transeuntes, como vistorias, reforço nas sinalizações, intensificação de fiscalização da velocidade em parceria com órgãos de segurança pública e campanhas de segurança direcionadas a corredores. A Transalvador considera ainda a criação de áreas de seguranças, semelhantes às ciclovias, para os corredores. 

 

“Há trechos e rotas que, por padrão, oferecem boa infraestrutura, como calçadas adequadas, pistas paralelas à orla, e trechos com segregação. Identificamos pontos críticos que precisam de adequação: largura de calçada insuficiente, pavimento irregular, falta de sinalização de travessias e trechos expostos a trânsito rápido. Estamos pensando em, da mesma forma como criamos um espaço para os ciclistas, fazer o mesmo com os corredores, criando áreas de segurança”, disse Diego Brito à reportagem.

 

 

Atualmente, ao menos três projetos para segurança de corredores tramitam na Câmara de Vereadores de Salvador. Todos os textos foram enviados à Casa Legislativa após o atropelamento do atleta Emerson Pinheiro, ocorrido em 16 de agosto. 

 

Uma das matérias, protocolada pelo vereador Anderson Ninho (PDT), o Projeto de Lei (PL) n° 346/2025 propõe a equiparação dos direitos de mobilidade e segurança dos corredores aos ciclistas, ao garantir espaços sinalizados para a prática da corrida de rua. 

 

Já o Projeto de Indicação n° 380/2025, de autoria de Débora Santana (PDT), pedia um estudo de viabilidade para interdição de vias para a realização de atividades físicas aos finais de semana, das 5h às 8h. A vereadora argumenta que a medida “proporcionaria um ambiente mais seguro e adequado para corredores, ciclistas e cidadãos que utilizam esse espaço como área de lazer”. Débora é mãe de Cleydson Cardoso Costa Filho, acusado de tentativa de homicídio duplamente qualificado após atropelar o maratonista Emerson Pinheiro. 

 

Em 31 de outubro, o presidente da Câmara, Carlos Muniz (PSDB), apresentou o PL n°  499/2025, que cria o Projeto Municipal de Segurança para Praticantes de Corridas de Rua e Atividades Afins, denominado de ‘Projeto ASPA – Atletas Corredores’. O texto visa a implantação de faixas-travessias em locais de treinos frequentes, velocidade máxima reduzida ou zonas de atenção e sinalizações. 

 

Veja as propostas que tramitam na Câmara: 

Imagem: Ilustração produzida por Isabella Mota

 

Modernização na CNH e educação no trânsito 

 

Em cenário nacional, novos debates surgiram em relação à educação no trânsito. Nos últimos meses, o projeto de modernização da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) tem sido um dos principais motivadores das discussões. A proposta do Governo Federal, divulgada no final de julho pelo ministro dos Transportes, Renan Filho, prevê o fim da obrigatoriedade das autoescolas para as categorias A e B. No entanto, os exames teóricos, práticos e as avaliações psicológicas, conforme o Código de Trânsito Brasileiro, continuam previstos no processo.

 

 

Apesar de nova no Brasil, a proposta já é realidade em países como Estados Unidos, México, Argentina, Chile e Japão. Considerando que, atualmente, o valor para obter a CNH ultrapassa, em média, os três mil reais, um dos principais pontos apresentados é a possibilidade de torná-la financeiramente mais acessível, com uma redução de custos que pode chegar a 80%.

 

Em 2 de outubro, o Governo Federal abriu uma consulta pública para ouvir a opinião da população. Segundo a Assessoria Especial de Comunicação do Ministério dos Transportes, a iniciativa bateu recorde histórico, com mais de 30 mil participações.

 

 

Especialistas e entidades, como a Federação Nacional das Associações de Detrans (Fenasdetran), apontam que a mudança proposta exige um debate profundo sobre políticas públicas voltadas à segurança viária, à formação cidadã e à responsabilidade no trânsito.

 

“A Fenasdetran considera essa proposta bastante complexa. Na visão da entidade, o Governo poderia adotar outras medidas para reduzir o custo da obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, sem a necessidade de dispensar o uso das autoescolas. Entre as alternativas possíveis estão a concessão de isenção de impostos, como IPI e ICMS, na compra de carros para as autoescolas, a redução de taxas e o subsídio de parte dos valores com recursos provenientes do Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (FUNSET), fundo federal criado pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) com a finalidade de financiar ações voltadas à segurança e à educação no trânsito. Sua principal fonte de receita vem de 5% do total arrecadado com multas de trânsito em todo o país”, conta Mário Conceição, presidente da federação.

 

Mário explica que a entidade avalia a educação no trânsito no país como precária, carente de maior integração e prioridade dentro das políticas públicas de ensino. Uma das soluções, segundo ele, é “começar do início”. A defesa da Fenasdetran é incluir a educação para o trânsito como componente curricular obrigatório desde a educação básica até o ensino médio. 

 

“O objetivo é formar cidadãos conscientes desde a infância, estimulando comportamentos seguros e responsáveis nas vias públicas e contribuindo para a redução dos índices de atropelamentos e acidentes. Por sinal, essa proposta está expressa na Carta de Salvador – Trânsito e Vida, documento que reúne os principais anseios e recomendações de palestrantes e congressistas presentes no Conclave realizado em outubro último, na cidade de Salvador”, destaca.

 

Mário Conceição é presidente da Fenasdetran. Foto: Arquivo Pessoal

O presidente da federação também chama atenção para a falta de integração entre os órgãos de trânsito e a necessidade de fortalecer a fiscalização e o cumprimento das leis. “A nossa legislação de trânsito é considerada uma das melhores do mundo. O que falta, porém, é o seu cumprimento efetivo.” Ele acrescenta que é necessário investir em campanhas de educação para o trânsito regionalizadas, que considerem as particularidades culturais de cada região, além de promover uma fiscalização mais humanizada, do número de agentes de trânsito e guardas municipais. A medida não visaria substituir a fiscalização eletrônica, mas complementá-la com a presença ativa de profissionais capacitados.

 

Atualmente, não há dados consolidados que permitam comparar com precisão as diferenças entre os estados brasileiros na formação e fiscalização de motoristas. Cada município possui autonomia para definir seus próprios processos, o que dificulta a padronização e o cruzamento de informações, especialmente porque nem todos estão integrados ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT). As principais fontes, como o Datasus e a Polícia Rodoviária Federal, apresentam limitações e falta de atualização, o que compromete a análise das variações regionais e dos fatores que influenciam os índices de acidentes e mortes no trânsito.

 

 

Enquanto isso, nas ruas e avenidas de Salvador, corredores, ciclistas e coletivos esportivos têm se mobilizado para reivindicar condições mais seguras de locomoção e uso dos espaços públicos. Entre eles está o grupo Mania de Corrida, liderado pelo ex-contador e estudante de Logística,  Júnior Cavalcante , que participou de atos em memória de vítimas do trânsito, como o corredor Emerson Pinheiro, atropelado durante um treino. Para esses movimentos, a luta vai além do esporte: trata-se de defender o direito à vida, à mobilidade e à cidade, um pedido de acolhimento por quem escolhe se mover por ela.

 

O grupo surgiu com o intuito de incentivar e apoiar os amigos, a partir da necessidade de criar uma página de motivação, independente de perfil. Júnior conta que, apesar de já existirem páginas que faziam serviços parecidos, havia um filtro estético e uma certa discriminação, “o Mania não faz discriminação de raça, cor ou gênero, se marcou a gente reposta, para poder engajar.” Outras realizações importantes são as ações sociais promovidas pelo grupo, com treinos beneficentes que arrecadam alimentos para instituições.

 

E além dos perigos que envolvem atropelamentos, o medo de assaltos e de danos à integridade física também é uma realidade vivida por corredores na cidade. Júnior explica sobre um caso que aconteceu com amigos, “tocando nesse assunto de perigo, recentemente recebi um relato que, na Magalhães Neto, no local que a prefeitura fechou para garantir a segurança do ciclista, ocorreu um arrastão feito por motoqueiros, levando vários celulares de vários atletas de bike que estavam treinando no local”. 

 

Após o caso de atropelamento de Emerson, alguns grupos de corredores se reuniram em ato de apoio e conscientização e o Mania foi um dos responsáveis. “A mobilização Emerson foi um ato coordenado, onde a gente reuniu algumas assessorias e alguns grupos em prol do objetivo de conscientizar e fazer o pedido de justiça, para que não fosse apenas mais um caso, mais um dado estatístico de um atropelamento qualquer”. 

 

Foto: Arquivo Pessoal

 

Com os últimos casos, mais orientações e alertas são reforçados para a sua equipe. “Hoje em dia, em Salvador, a gente orienta: não andar de costas para veículos, evitar horários de pico, a preferência é treinar de 5h até 6h30 da manhã, porque a partir desse horário o trânsito fica mais conturbado. E também evitar áreas que têm um acesso muito grande de veículos próximos”, diz Júnior.

 

Júnior cita alguns lugares mais seguros para treinar na cidade, como as pistas de atletismo de Pituaçu e da UFBA, além de parques como a Praça dos Eucaliptos, a Praça Aquários e a área da Centenário, onde se corre sobre o passeio, evitando a pista. Ele também menciona a região da Barra, que possui redutores de velocidade e um policiamento mais constante: “Salvador já passou do momento de ter uma parte destinada para os corredores de rua, desde a Barra até Itapuã, uma área com piso adequado. Para que a gente possa correr com segurança nessa hora e com policiamento mais ostensivo e extensivo, desde o horário das 4 da manhã, que é quando o pessoal começa a treinar, até as 8 horas, que é o horário que envolve o maior pico de pessoas treinando na orla de Salvador”.

 

Para Júnior, o debate sobre segurança nas vias não se limita à infraestrutura, mas também à legislação, “se faz necessário a revisão do nosso Código Penal, principalmente para casos de embriaguez no volante, porque quem tem essa atitude está assumindo o risco de matar uma pessoa. Tem que ser encarado com uma lei mais enérgica, com penas mais severas. Hoje, infelizmente, há muitas brechas, onde quem mata uma pessoa, com 15 dias, está na rua respondendo em liberdade”.

 

Os casos têm gerado questionamentos que vão além das ruas: o problema está nas leis, na educação no trânsito ou na falta de espaços seguros para os atletas? A resposta aponta para um desafio coletivo, que exige ação conjunta entre poder público, sociedade civil e órgãos de fiscalização. 

 


 

Isabel Queiroz é estudante de Jornalismo na FACOM/UFBA e repórter de Economia no jornal impresso A Tarde. Atua também no projeto @entreempontos como coordenadora de imagem e repórter. Possui experiência com jornalismo social e foi editora-chefe da 7ª edição da revista JaÉ: Gerações, que abordou sobre cicatrizes invisíveis deixadas por infâncias e juventudes marcadas pela desigualdade, violência e ausência de oportunidades. Além disso, é apaixonada por literatura e por pautas de comportamento.


Isabella Mota
é estudante de Jornalismo na FACOM/UFBA, com experiência em cobertura política, eleições e Justiça. Foi setorista da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) e da Câmara Municipal de Camaçari. Em 2025, foi finalista da premiação Expocom Nordeste, na categoria Jornalismo Impresso, com a reportagem ““Passou por mim e não me olhou”: Em períodos de alta estação, crianças e adolescentes protagonizam cenas de trabalho infantil em Salvador”.

 

A motivação da pauta surgiu com a inquietação diante do aumento de atropelamentos envolvendo corredores em Salvador. O crescimento da prática da corrida na cidade evidencia a necessidade de mais segurança e infraestrutura adequada para quem utiliza as ruas para se exercitar.

 

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