Desinteresse público deteriora maior rio de Salvador

Rio Camarajipe tem 14km de extensão e espalha poluição por 37 bairros da capital baiana

 

Giovanna Araújo (@giovannadaraujo) e Rafael Carmo (@rafa_carmooo

 

Ele passa entre as casas, debaixo de pontes e às vezes aparenta sumir em meio à “selva de pedra”. Essa é a realidade de muitos rios que cortam as grandes cidades brasileiras, mas um, em particular, chama atenção em Salvador. O Rio Camarajipe, o maior da capital baiana, com 14 km de extensão, é retrato do descaso com o meio ambiente urbano e da poluição que atinge as capitais brasileiras de forma contínua e sem previsão de trégua. Um patrimônio, que um dia representou a prosperidade da primeira capital do Brasil, agora sofre com o esquecimento.

 

 

“O Rio Camarajipe está muito ligado à organização da cidade. No início do século passado, Salvador passou por uma industrialização tardia e começou a se expandir para a Cidade Baixa, que virou o núcleo da cidade, onde hoje conhecemos como o centro. Esse volume de pessoas que vêm para Salvador em busca de oportunidades acabou avançando para a região do Subúrbio Ferroviário, o que gerou problemas habitacionais. Até hoje Salvador sofre muito com esse processo de ocupação. E tudo isso afeta muito a nascente do rio, que sofre com a poluição por conta de uma ocupação precária e sem saneamento”, destacou André Fraga, vereador eleito pelo Partido Verde.

 

André é um dos principais militantes da causa ambiental no cenário político soteropolitano e trabalha para não deixar o Camarajipe despercebido. Durante as eleições municipais de 2024, uma das suas pautas foi justamente a recuperação do rio.

 

“O nosso desafio maior é habitação com saneamento básico, mas a gestão pública nem sempre consegue dar conta do inchaço de cidades como Salvador, é um processo muito complexo, não dá para apontar culpados. Pegue, por exemplo, o Rio das Tripas, que ficava do lado da Câmara de Vereadores. O nome do rio é em alusão ao descarte das tripas de um açougue que tinha no local. Hoje ninguém nem sabe que existe esse rio, que passa ali pelo subsolo da Barroquinha. Perdemos a relação com os nossos rios, e o Camarajipe é um deles”.

 

 

No estudo “O Caminho das Águas em Salvador”, publicado em 2010, uma parceria entre a Secretaria do Meio Ambiente e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), foram contabilizados 668.871 habitantes ao longo da bacia do Camarajipe, cerca de 27,3% da população da cidade.

 

De acordo com o microbiólogo e professor do Instituto de Biotecnologia da UFBA Paulo Almeida, a ocupação desordenada de Salvador foi uma das motivações para a poluição em larga escala do Rio Camarajipe.

 

“A partir de 1970, Salvador sofreu muito, cresceu muito, de uma forma desordenada. E isso gerou o estabelecimento das populações mais pobres nesses bairros e de uma forma desordenada, naturalmente, sem planejamento urbano”, explicou o professor.

 

“Esses problemas são resultantes do crescimento populacional, da falta de infraestrutura dessas regiões, consequentemente, a população não tendo o apoio do poder público, ela faz o que quer sobreviver? Ela usa, por exemplo, o rio para esgotamento sanitário e também para a destinação do lixo”, concluiu.

 

Funcionário da limpeza retira lixo da foz do Rio Camarajipe, na orla de Salvador / Foto: Rafael Carmo

 

Para o professor, que mesmo decepcionado com a situação, se mostra satisfeito em ser consultado para falar sobre o tema diante do esquecimento da população, diz ser possível reverter a realidade com a conscientização pública.

 

“Na verdade, nós poderíamos reverter essa situação, porque resolver esse problema habitacional é difícil, já que a população está instalada, algumas casas inclusive estão sobre tubulações de esgoto. É preciso educar essas populações e ter uma infraestrutura melhor”, destacou.

 

“Ou você educa a população e dá infraestrutura para ela não jogar o lixo no rio, ou você vai ter uma poluição eterna. Agora, é possível recuperar o rio? Sim, basta não sujar o rio”, sugeriu Paulo.

 

O caminho do Camarajipe

 

Confira abaixo o mapa do rio:

                                                         Mapa Elaborado pelos autores

 

O maior rio de Salvador, com seus 14 km de extensão, percorre mais de 37 localidades da capital baiana, entre elas: Marechal Rondon, Boa Vista do São Caetano, Saramandaia, Calabetão e Mata Escura, grandes bairros da cidade que abrigam suas nascentes. O Camarajipe, hoje deteriorado, foi ainda o ponto de partida para bairros como Boa Vista de São Caetano e Alto do Cabrito, criados em torno do rio e seus afluentes.

 

Esse imenso corpo d’água passa despercebido por muita gente, mas, provavelmente, ele estará à vista em algum momento do dia-a-dia do soteropolitano.

 

Vista do Rio Camarajipe no Parque Costa Azul / Foto: Rafael Carmo

 

Em 2021, o Camarajipe foi mapeado pela fundação The Ocean Cleanup como um dos 1000 rios que mais contribuem para a poluição dos oceanos no planeta. No Nordeste, o rio ainda ocupa a pior posição neste quesito.

 

Um dos pontos que sofre com essa poluição é o Dique do Cabrito, criado para represar as águas do Camarajipe após a instalação de indústrias na década de 1950 no Alto do Cabrito. A história do bairro está diretamente ligada à construção desse dique, que contribuiu para as formações do Rio Camarajipe e Rio do Cobre.

 

Navegue pelo Dique do Cabrito abaixo:

Para quem passa pelo rio, a imagem de abandono, assim como o odor desagradável, impacta de primeira. Como é o caso do professor Samuel Silva, 46 anos, que fazia exercício na orla do Jardim de Alah e não conhecia o rio, mas já se indignava com o descaso.

 

“Não é só o rio que tá poluído, se desdobra na qualidade de vida, na poluição da água, no contexto geral da cidade, as pessoas não podem usufruir, tem o ar, o fedor. Enfim, o rio sendo poluído acarreta diversos outros problemas”, apontou.

 

Diretor do Sistema de Áreas de Valor Ambiental e Cultural (Savam), que cuida da preservação do meio ambiente urbano e da administração de parques municipais e áreas de proteção ambiental, João Resch esclareceu a dimensão do problema enfrentado pelo Rio Camarajipe e já adiantou planos para sua recuperação.

 

“Hoje é um esgoto a céu aberto, não tem aquela vida natural. A proposta é restabelecer o rio, dar uma nova vida. Mudando a questão do esgotamento, trazendo a educação ambiental para o descarte correto de resíduos e alterando a conexão do esgoto com a rede de drenagem. Isso tudo está dentro de um pacote que a Prefeitura está preocupada em fazer. Mas é a longo prazo, temos que começar em algum momento”.

 

A reportagem buscou fontes da Secretaria Municipal de Sustentabilidade para maiores esclarecimentos, mas, até o momento da publicação, não houve retorno.

 

A busca pela recuperação 

 

Local exato do encontro entre o Rio Camarajipe e o mar, entre as praias do Jardim de Alah e do Jardim dos Namorados / Foto: Rafael Carmo

 

Apesar do alto nível de deterioração, acompanhado de um crescente descaso que afasta a discussão da população, há quem acredite que o Camarajipe consiga, sim, voltar ao que já foi um dia. Ainda que em um cenário desanimador, a busca pela recuperação do maior rio de Salvador persiste.

 

Para o professor da UFBA, a solução é simples, ao passo que se torna complexa pela falta de apoio. A previsão é otimista: segundo o professor, se tomadas as medidas corretas, o rio estaria limpo novamente em, no máximo, três anos.

 

“As nascentes do rio têm que ser protegidas, podem ser revitalizadas com a introdução das plantas originais, uma revitalização urbana com o uso do fertilizante gerado com próprios esgotos ou lixo doméstico orgânico. Assim, a gente teria o rio recuperado em três anos, sinceramente, muito menos que isso eu acredito. O rio por natureza, se autodepura, nós precisamos recompor a estrutura original dele”, pontua.

 

Rio Camarajipe no Parque Costa Azul, antes de desembocar no mar / Foto: Rafael Carmo

 

O diretor da Savam, por outro lado, reforça que a recuperação do Camarajipe será a longo prazo, mas mostra otimismo em um trabalho bem feito em colaboração com outros órgãos para renaturalizar o rio desde a sua nascente.

 

“A nossa ideia é ter transversalidade com outros atores, a secretaria sozinha não tem condições de fazer um plano de ação dessa dimensão. É um projeto a longo prazo, tem outros atores envolvidos da própria gestão e financiadores. Então tratamos isso com expectativa por ser um horizonte para a recuperação de uma área totalmente degradada. A proposta seria renaturalizar o rio desde a sua nascente”, explicou João.

 

No entanto, a inconsistência de auxílio para impulsionar a recuperação do Camarajipe impede a concretização do plano. Paulo compreende o cenário como um “retrocesso técnico”.

 

“Já tem imensos projetos aí para praia, de milhões de reais, mas eu não vejo um centavo para o rio. Então, como resolver o problema da praia, se é o rio poluído que leva o problema para a praia? Então, são coisas que você vê em pleno século XXI, no terceiro milênio, e você vê esse retrocesso técnico sendo implantado com um volume de recursos relativamente grande e sem a solução do problema”, destacou.

 

De acordo com Paulo Almeida, o projeto desenhado pelo Instituto de Ciências da Saúde da UFBA estipula o gasto da recuperação do Camarajipe em R$27 milhões, com aporte do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. A proposta foi aprovada há dois anos, mas segue sem respostas (clique aqui e veja o plano de ação na íntegra).

 

“O nosso projeto é pequeno, são previstos R$27 milhões. Mas até agora, com os contatos que nós tivemos com deputados, com senadores, e até para os secretários das áreas envolvidas do Estado, nós não tivemos nenhuma resposta”, completou o professor.

 

Foz do Rio Camarajipe / Foto: Rafael Carmo

 

Para quem frequenta os meandros da política, esse valor de R$27 milhões é realmente abaixo do necessário para a recuperação do rio. Segundo André Fraga, vereador reeleito em 2024, uma revitalização dessa magnitude, com implicações em diversos bairros de Salvador, deve custar mais de R$2 bilhões.

 

“Um processo de recuperação do Rio Camarajipe envolvendo todos os componentes sociais e econômicos não é menos do que R$2 bilhões. O projeto não contempla essa dinâmica social, com mudanças drásticas de infraestrutura”.

 

Diante da crise do Camarajipe e o pessimismo de pesquisadores e da sociedade civil para a recuperação do rio, o professor e pesquisador Paulo Almeida vê na academia uma chance de fazer esse patrimônio natural voltar a ter vida e se tornar novamente um símbolo da capital baiana.

 

“Eu não posso parar de gritar com uma situação ruim que a gente se encontra e que eu vejo que há solução. E a solução tá na academia, tá na tecnologia, na inovação, etc, e isso nós temos. A universidade tem, mas é muito pouco chamada a participar dos destinos e das soluções para os problemas urbanos da cidade”.

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Giovanna Araújo é graduanda em Jornalismo pela UFBA, estagiária de cultura no Jornal Massa!, do Grupo A Tarde, e interessada em pautas relacionados ao meio ambiente.

Rafael Carmo é jornalista em formação pela FACOM UFBA e é estagiário de esportes no ge.globo. Rafael também tem interesse em temas relacionados a rios e ecossistema urbano.

 

A principal motivação dos estudantes para a escolha do tema foi dar luz aos problemas do Rio Camarajipe, que está presente nas idas e vindas de milhares de soteropolitanos diariamente, mas ainda passa despercebido por muita gente.

 

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