Na Praia do Buracão, moradores se mobilizam contra espigões e reforçam o debate sobre meio ambiente, direito à cidade e planejamento urbano
Anna Júlia Barbosa (@annaju.bs) e Anderson Luis (@anders0u)
O último 2 de julho, data conhecida como o Dia da Independência Nacional na Bahia, ficou marcado pela presença do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, segurando uma placa que prega a taxação dos super ricos no país. Porém, o ato que buscou defender o direito da população mais humilde não foi a única bandeira levantada durante o desfile cívico. Movimentos ambientais como o SOS Buracão, ao lado de outros como o SOS Áreas Verdes, Coletivo Stella Maris, Gambá, Movimento pela Moradia e Ação da Cidadania, marcaram presença no evento, em busca de tensionar debates sobre a defesa ambiental em prol do bem-estar social de quem vive em Salvador.
Dentre esses coletivos ambientais, a atuação forte especialmente do Movimento SOS Buracão se destaca por ter conseguido barrar a construção dos dois espigões de 15 e 16 andares que a Odebrecht (Grupo Novonor) quer erguer na Praia do Buracão. “Eu considero o movimento SOS Buracão um dos mais vibrantes em Salvador no momento e ele conseguiu resistir, divulgar a luta para evitar o sombreamento da Praia do Buracão e alcançou êxito. Eu penso que se o empreendimento não foi edificado até agora é em função da repercussão política e do desgaste político da Odebrecht, com a construção desses prédios”, afirma Hortênsia Gomes, promotora de justiça responsável pelo andamento do processo no Ministério Público da Bahia.
A professora de Pós-Graduação em Geografia na UFBA e moradora do local há seis anos, Guiomar Germani, conta como conseguiram ter acesso aos documentos do projeto, o qual, segundo ela, já trazia um alvará de construção dos empreendimentos de 70 a 74 metros de altura.
“O interessante é que ele (projeto) chega como se fosse uma coisa boa para a comunidade. A gente começou a se mobilizar e pedir para ter acesso ao projeto. Coisa que não conseguimos, a não ser através do Ministério Público. Para a nossa surpresa, quando se pressionava a prefeitura ou alguém para saber o que ia ser construído aqui [Buracão], não se tinha transparência nas informações. E na Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (SUCOM) também não se tinha acesso ao processo que a gente sabia que estava tramitando”, relata Guiomar.
A permissividade da legislação municipal no que concerne à degradação ambiental é uma das maiores críticas dos moradores. “Existe um enfrentamento, quando o prefeito vem se pronunciar sobre esse fato ele fala que vai cumprir a lei. Mas a lei já está sendo mutilada pelos interesses. É uma legislação permissiva nesse sentido. Então, o que está acontecendo aqui não é diferente da desafetação dos imóveis públicos de Salvador e das áreas verdes desafetadas: Morro do Ipiranga, Vitória, e outras 21 áreas que estão no processo de desafetação. E o prefeito fala que são áreas que ‘não têm uso, então vamos construir’, critica Guiomar Germani.
No mapa abaixo é possível visualizar a extensão da região de Buracão:
Movimento ambiental
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O SOS Buracão, criado a partir da associação de moradores do bairro, originada em 1997, estabeleceu frentes para barrar a construção dos espigões, apesar da aprovação dos alvarás pela Prefeitura de Salvador. Miguel Sehbe, presidente do movimento, conta que a união com outros coletivos ambientais tem ajudado a avançar na luta e no debate da causa. “Qualquer possibilidade de iniciação da obra ou movimentação, já está combinado de todo mundo ir para a rua e não deixar nenhum caminhão entrar. Isso com certeza vai ter um alcance maior porque antes a nossa briga era isolada, mas hoje todos os coletivos estão unidos”, conta Miguel.
Para quem vive no Buracão, como a fotógrafa Alini Orathes, que mora no local há quase 16 anos, a praia carrega uma memória. Ela contou como as mudanças poderão impactar no seu dia a dia. Veja:
Atualmente, o processo conta com duas frentes jurídicas, uma no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA), com a alegação de inconstitucionalidade dos alvarás, e a outra no Ministério Público da Bahia (MPBA), tratando do sombreamento da praia, principal questão.
A promotora de justiça responsável pelo andamento do processo no MP-BA, Hortênsia Gomes, revela o andamento da construção. “Ambos se encontram com alvará de construção, tanto o Infinity Blue quanto o Infinity Sea, desde dezembro de 2023. Então, significa que o empreendedor querendo, pode começar a construção a qualquer momento”, afirma. Ela diz que o diálogo junto à prefeitura e à Odebrecht, está sendo viabilizado por meio de audiências públicas. E que apesar disso, o prefeito Bruno Reis (União Brasil) ainda não se posicionou a favor da interrupção do projeto.
“O MP dialogou com a empresa, realizou audiências públicas, conversou com o staff da empresa, tentando convencê-los, mas a empresa entende que há uma janela jurídica, que não estão praticando nenhuma ilegalidade e não sinalizaram ainda quanto à desistência da implantação do empreendimento. E há diálogos com o município também, inclusive uma recomendação que foi proposta, mas o poder municipal, inclusive o chefe do executivo, está muito reticente em relação a qualquer anulação do alvará de construção desses prédios”, afirma a promotora.

Sob a perspectiva do morador, a transformação prevista para o local toca não apenas na questão técnica, mas principalmente na emocional. Aline relata a experiência da sua família no espaço e se emociona. Confira abaixo:
Paredões de calor
A construção dos prédios tem o potencial de atingir outros pontos de Salvador. A professora da UFBA, Guiomar Germani, explica sobre como esses projetos de atravessamento capitalista desconsideram os impactos negativos a serem vivenciados pela população, se executados. No vídeo a seguir ela comenta também sobre o potencial de construção de espigões e barreiras de concreto no barramento dos ventos que chegam à cidade pelo oceano, dificultando a ventilação na capital. Assista:
Um estudo internacional, publicado em março de 2024 pela Climate Central, apontou Salvador como um dos cinco municípios brasileiros mais afetados pelo aumento das temperaturas em virtude do aquecimento global. E esse foi um dos argumentos utilizados pela vereadora Marta Rodrigues (PT) na defesa do Projeto de Lei PLE-87/2024. Ele obriga o setor público e privado a realizar o replantio de árvores e mudas em áreas públicas da capital baiana, cada vez que suprimirem áreas de vegetação para a realização de construções. Rodrigues aponta a formação de “ilhas de calor” como resultado da construção de concreto em áreas desafetadas.
“Cada metro quadrado de solo que deixa de ser um parque ou uma praça para virar concreto amplia as ilhas de calor. Então a gente não pode, de maneira nenhuma, permitir que se formem essas ilhas de calor, que multiplicam também a reflexão solar e empurram os termômetros lá pra cima”, explica a vereadora.
As “ilhas de calor” são um fenômeno mapeado pelo Observatório do Calor, uma pesquisa coordenada pelo professor Paulo Zangalli Júnior, do Departamento de Geografia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). O coordenador do projeto, que segue o modelo do Rio de Janeiro, sendo o segundo de seu tipo na América Latina, destaca a influência exercida pela densidade entre uma construção e outra nas elevações térmicas de Salvador. “Áreas na cidade que têm alto adensamento construtivo, muito concreto, muito asfalto, com pouco espaço entre uma construção e outra vão concentrar e produzir mais calor”, detalha Zangalli.
A discussão segue em aberto, envolvendo diferentes perspectivas sobre o uso do espaço urbano, a preservação do meio ambiente e o direito à cidade. Enquanto os empreendimentos avançam, o debate sobre o modelo de crescimento desejado para Salvador segue no centro das disputas entre interesses econômicos, políticas públicas e a voz das comunidades. Alini Orathes, fala da perspectiva do futuro com a devastação em curso na Praia do Buracão e na cidade como um todo, através das desafetações. Assista:
OBS: Nós tentamos contato com a assessoria da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi) e da construtora Odebrecht, responsável pelos espigões na Praia do Buracão, para responder perguntas sobre o empreendimento, mas não obtivenos retorno até o fechamento desta reportagem.
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Anna Júlia é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA. Atua na Baiana FM e BNews SP e é mãe de Teodoro.
Anderson Luis é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA. É estagiário no Aqui só Política e é pai de Shea.
A motivação para realizar esta reportagem nasce do interesse em compreender por que a luta do Buracão ultrapassa os limites do bairro e diz respeito a toda Salvador. A questão vai além do turismo, ela envolve a preservação ambiental, o acesso coletivo às praias e o modelo de cidade que está sendo construído. O avanço de obras semelhantes em outras regiões da capital acende um alerta sobre os impactos sociais, ecológicos e urbanos desse tipo de intervenção e reforça a urgência de um debate público mais transparente.
