Heraldo de Deus: ator e guerreiro malê

Conheça o ator, roteirista e diretor que vem se destacando na nova cena do teatro e do cinema negro soteropolitano 

 

Anne Meire Ribeiro (@annemeireribeiro)  e Yan Inácio (@inacioy)

 

“A Igreja foi muito essencial na minha vida por um bom tempo. Depois da eleição de Bolsonaro, eu falei: não tenho condição de estar num lugar em que estão validando a minha morte”. Nascido e criado numa família católica em São Caetano, bairro de Salvador, Heraldo de Deus, de 37 anos, tem um sobrenome que, coincidentemente, gera um trocadilho com a fé que cultivou pela maior parte da sua vida. Ator formado pelo 27ª turma do Curso Livre de Teatro da UFBA, também é diretor, roteirista e sócio-fundador da Sujeito Filmes, coletivo de cinema negro baiano.

 

Durante o curso, chegou a ficar até às três da manhã em cena, estudando. “Um ano e pouco fazendo maratona. Os últimos três meses do curso são os mais intensos”, recorda durante a nossa videochamada, agendada em uma janela de oportunidade entre a rotina de ensaios e compromissos da paternidade, numa noite de quarta-feira de novembro, às 21 horas.

 

Quando questionado sobre sua profissão favorita, respondeu sem hesitação: “sempre ator”. Inclusive, começou a escrever para criar seus próprios personagens e, naturalmente, partiu para a direção depois disso.

 

“Amostrado”

 

“Acho que a vida foi me levando desde a infância”, conta Heraldo sobre os caminhos que o levaram à dramaturgia. No bom baianês, Heraldo sempre foi “amostrado”: quando criança, já gostava de animar festas familiares com palhaçaria e puxou da avó – com quem foi criado junto da mãe -, a vocação para contar histórias. “Eu sempre fui essa pessoa ‘de estar na frente’”, explica.

 

A formação franciscana lhe rendeu o pontapé inicial na arte da encenação e do canto, e também foi nesse momento que as peças para a igreja se tornaram seus primeiros rabiscos de roteiro. Já no colégio católico onde estudou, esteve sempre em cena. “Eu fui o primeiro Jesus Cristo negro na escola”, relembra, orgulhoso. 

 

Daniel Pita

“Fazer teatro é difícil”, é o que escutamos diariamente nos nossos estágios em meios jornalísticos locais e Heraldo não falou algo diferente.“Falta política pública estruturante, de pensar o teatro e a formação de plateia. Tem muitos espetáculos com temáticas importantes para serem vistos, e que esbarram nessa falta de um apoio”, comenta. 

 

Usa como exemplo a peça “Compadre Ogum”, baseada em um livro de Jorge Amado, que participou em meados de outubro deste ano no Espaço Cultural da Barroquinha. “O Estado tem dificuldade de pensar o teatro, que, em linhas gerais, custa muito caro para fazer”, argumenta. Ainda diz que os adolescentes não interagem com os espetáculos em cartaz na cidade, pelo menos não tanto quanto poderiam, devido à falta de incentivo público. 

 

“Nó” outro projeto que também se orgulha bastante, conta a história de pais negros passando pelo luto da perda do filho. A peça, que também esteve em cartaz neste ano, integra o catálogo de trabalhos que o enchem de orgulho e a voz se anima ao narrar as experiências vividas. 

 

“Eu estou entregando o melhor para o mundo e para o meu filho também”

 

Sentado em sua escrivaninha de trabalho, Heraldo nos mostra seu mural, ali, uma foto que tirou do filho Heitor, imagens de orixás e o cartucho de um projeto que acabou em circunstâncias ruins com um post-it escrito “vida, morte e vida”, para não esquecer sobre a finitude dos ciclos. “Por mais que a gente goste ou não, as coisas vão acabar”, completa. 

 

Aos 10 anos, Heraldo foi selecionado para um teste de elenco na Rede Bahia. Nesse momento, vislumbrou a carreira artística: “Eu tinha ficado encantado com a câmera e tudo”, foi com um olhar fascinado de sonhador que nos descreveu o sentimento de estar em um estúdio televisivo pela primeira vez.

 

Quando se é criança, a grandiosidade do mundo pode fabricar memórias para o resto da vida. Essa é uma das premissas de “Cinco Fitas”, curta escrito em parceria com Vilma Martins, sócia-fundadora da Sujeito Filmes. Na trama, dois garotos negros fogem de casa escondidos da avó e mãe, em São Caetano, para vivenciar a lavagem do Bonfim.

 

 

Assim como Heraldo vislumbrou um mundo diferente ao ver os estúdios de TV, os garotos presenciam a festa e constroem aprendizados para o resto da vida. Quando voltam para a casa, encerram o dia sãos e salvos nos braços das matriarcas da família. O roteiro do filme foi finalizado nos corredores da maternidade enquanto Heraldo esperava a chegada de seu primeiro filho, em janeiro de 2018. 

 

A paternidade foi o assunto que mais comoveu Heraldo durante nossa conversa, que durou mais de uma hora e meia e passou rapidamente pelos quase 15 anos de carreira artística. A chegada do primogênito abalou as estruturas do jovem ator, que estava, talvez sem perceber, construindo um imaginário diferente da infância para seus filhos. Agora, ele aguarda seu segundo pequeno.

 

O motivo estava estampado na camiseta que vestia enquanto conversava conosco. Nela, o herói Pantera Negra aparecia com toda sua imponência e altivez. Ali não havia uma simples roupa, mas uma imagem que representava Heraldo da maneira como ele demandava quando era criança. Por isso, a chegada do pequeno Heitor, agora com 6 anos, influenciou mais ainda no principal objetivo de sua arte:

 

“Desejo muito que meu filho e outras crianças da idade dele possam ter um imaginário, serem representadas na tela e que eu possa proporcionar isso. Na minha geração não foi assim, eu não tive isso. Antes era raro eu ver algo em que eu me sentisse representado”, projeta.

 

“Cinema é ousadia. Se você não ousa sonhar, não faça cinema”

 

A frase impactante de Antonio Pitanga é uma das anotações na escrivaninha de Heraldo. O lendário ator baiano é uma das maiores inspirações do nosso entrevistado e ele nos conta como fez para entrar no elenco de “Malês”, segundo longa-metragem dirigido pelo artista octogenário. O filme é inspirado pela Revolta dos Malês, maior rebelião de escravizados do Brasil Colônia, que completa 190 anos em 2025, quando a obra chega aos cinemas.

 

Heraldo descobriu que o filme seria feito por uma colega de sala da sua segunda formação, o Bacharelado Interdisciplinar de Artes, na UFBA. No dia, Antonio Pitanga estava na FACOM e ele não pôde ir à aula devido ao trabalho.

 

No final de 2021, por volta de outubro ou setembro, não se lembra ao certo, recebeu uma mensagem da sua agente perguntando se ele não gostaria de participar do filme, e assim, sem muitas dificuldades, ganhou o papel. Só precisou mandar o material e uma foto que tinha com Antonio Pitanga, tirada em algum evento no Teatro Castro Alves.  

 

Recordando sobre a sua relação com o filme, lembrou de outro evento isolado, mas não tão distante assim. Uma gravação de clipe com Mateus Aleluia, quando o músico o chamou de “guerreiro hauçá”. Na época, Heraldo pesquisou sobre a etnia no Google até se achou parecido, mas logo esqueceu do fato. 

 

 

Um tempo depois, decidiu fazer um teste de ancestralidade. O resultado: mais de 91% de ascendência africana e, desse percentual, mais de 50% da região dos hauçás. Por coincidência ou não, depende da sua fé, a Revolta dos Malês foi feita, em grande parte, por negros livres com ascendência desse povo, e para Heraldo, o filme foi um chamado ancestral. 

 

“Eu acho que o mais importante que fica do meu personagem é que nenhuma vitória será individual e a emancipação tem que ser coletiva. Eu acredito muito nisso”, explica, quando perguntado sobre seu papel.

 

A filosofia geral do levante e do longa ecoa nas ideias da Sujeito Filmes, formada nos corredores da Facom por Heraldo, Vilma Martins e Djalma Calmon. Da mesma maneira como os negros muçulmanos procuraram a liberdade coletiva contra a escravidão, os cineastas sujeito-filmistas buscam, através da coletividade, construir representações que incluam o povo negro. Na frente, ou atrás das câmeras.

 

Para o ator, eles realizam um cinema “(in)dependente”, porque não fazem as coisas sozinhos. Eles ajudam e são ajudados por outras produtoras da cidade. Agora, a Sujeito Filmes terá seus primeiros longas após a aprovação em editais de incentivo ao audiovisual, nos revela.

 

 

Entre uma resposta e outra boceja, nossa entrevista já chegava perto das 23h daquela quarta-feira e o dia havia sido cansativo para todos nós. Durante a construção desse texto, foram muitas as conversas com Heraldo, diálogos divididos entre WhatsApp, mensagens diretas do Instagram e nossa longa chamada de vídeo. Isso ainda foi pouco para mergulhar nas rotinas de ensaio, nas frequentes idas à Paraíba para gravar a série Cangaço Novo, do Prime Video, e nos compromissos familiares. No meio disso tudo, descobrimos de fato um guerreiro hauçá soteropolitano.

 

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Anne Meire Ribeiro estuda jornalismo na Facom/UFBA. Atua como radialista, roteirista e repórter freelancer. Apaixonada por comunicação, ama temas relacionados a direitos humanos, cultura e representatividade. 

 

Yan Inácio é jornalista em formação pela Facom/UFBA. Atua como repórter e rabisca na crítica cinematográfica, fotografia e design. Tem interesse em filmes, teatro e estudos culturais. 

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