Lei do solo divide Salvador entre preservação e mercado imobiliário

Aprovada sob contestação, nova Louos levanta dúvidas sobre transparência e participação popular

 

Luanda Costa (@_luandacosta)

 

A cena se deu na Câmara Municipal de Salvador, durante a sessão do dia 24 de setembro de 2025. O burburinho era típico dos dias cheios, tumultuados por projetos importantes, que envolvem muita gente e muito dinheiro. Apesar das vozes em confronto e discordâncias acentuadas, a decisão foi apenas uma: a aprovação. Os vereadores aprovaram o PL 175/2024, que modifica a Louos (Lei de Uso e Ordenamento do Solo). Seu texto original estabelece regras sobre o que pode ou não ser construído, preservado ou explorado na cidade. Seu objetivo é garantir que a prefeitura tenha base legal para garantir que os empreendimentos — públicos e privados — sejam instalados em locais adequados, com segurança e planejamento. Mas as mudanças na legislação geraram insatisfação em diversos setores da população soteropolitana.

 

Vereadores aprovam projeto que modifica lei do uso do solo em Salvador após MP recomendar suspensão de votação — Foto: Câmara de Vereadores de Salvador

Mais de duas semanas antes, o Ministério Público da Bahia (MP-BA), por meio da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo, recomendou a suspensão da votação do projeto. Conforme o MP, a votação era prematura porque a proposta foi concebida sem o devido planejamento, estudos técnicos e a participação popular necessária. Assinada pela promotora Hortênsia Gomes Pinho, o documento indicou que não havia sentido em antecipar a votação tanto da Louos como do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), uma vez que a Fundação Getúlio Vargas (FGV) foi contratada pelo valor de R$3,6 milhões, com dispensa de licitação, para realizar um serviço de consultoria para atualização desses documentos. Em uma segunda recomendação, publicada após a aprovação do PL, o MP argumentou: “Configura-se uma total contradição atropelar o processo de revisão em curso, com alterações e revisões pontuais, direcionadas a interesses privados específicos. Por que essas alterações não podem aguardar a revisão do Plano Diretor e Louos em curso?”

 

O mapa do interesse

 

Após a aprovação do PL, o texto foi levado à sanção do prefeito Bruno Reis e foi promulgado: assim ganhou corpo a nova lei 9.879/2025, publicada no Diário Oficial de Salvador um mês depois da aprovação do projeto. O instrumento de planejamento que delimita áreas para diferentes usos, intitulado zoneamento, foi modificado na Área de Proteção de Recursos Naturais (APRN) do Jaguaribe. Além disso, a lei regulou o uso do solo na Ilha dos Frades e Bom Jesus dos Passos. Ficou definido que a circulação de veículos, quadriciclos, esportes, comércio e fogos de artifício nas praias serão controladas, bem como o embarque e desembarque de pessoas e cargas. Também há a nova obrigação de cadastramento das associações de turismo e mergulho nessas ilhas e limites para turismo náutico (como passeios de barco e mergulho).

 

De acordo com a promotora Hortênsia Pinho, os “interesses privados específicos” envolvidos nesse trâmite envolvem o setor imobiliário de Salvador. Ela afirma que a lei promove alterações no zoneamento urbano em áreas que favorecem grupos econômicos vinculados a um grande empresário. Em entrevista, ela solicitou que o nome dele não fosse citado na reportagem. “90% dos terrenos citados no projeto são de propriedade desse grupo econômico. Ele está buscando disciplinar a terra de forma a permitir que ele construa o que quiser”, pontua. 

 

Em um dos mapas do PL, há a criação de uma Zona de Proteção Ambiental em Jaguaribe, chamada ZEPAM. A promotora argumenta, no entanto, que este é apenas um recurso para fingir que ações sustentáveis estão sendo tomadas. “Você pode pensar que uma nova ZEPAM é positiva para o meio ambiente, tendo em vista que anteriormente esta era uma Zona Especiais Uso Social (ZEIS). Mas olhando com cuidado, notamos que esta é uma área onde está construída a Escola Pan Americana da Bahia, e isso é um grande absurdo. Como uma zona de proteção ambiental será colocada em um local que já está edificado?”. 

 

Mas perceber essas incoerências não é fácil. A descrição exata da área do zoneamento não está descrita no texto do documento, dessa forma, apenas a comparação entre os mapas antigos e novos podem tornar as mudanças visíveis. Segundo a promotora, eles devem ser feitos em um formato chamado Shapefile, porque este permite que seja feita a sobreposição entre os desenhos novos e antigos. Como os mapas não são disponibilizados pela Prefeitura neste modo, a mudança só pode ser percebida e analisada no “olhômetro”. 

 

O que o solo esconde? 

 

Algumas coisas mudaram do projeto até o texto da lei. No seu conteúdo inicial, existia um sistema viário passando pelo Vale Encantado, um parque ecológico que preserva a Mata Atlântica na capital. Mas essa alteração foi retirada do material final “devido a muita pressão social por meio das redes sociais”, analisa o biólogo Alexander Gomes, que trabalha há cerca de 20 anos com planejamento e licenciamento ambiental. Apesar da realização de duas audiências públicas, ele acredita que a mobilização de defensores da preservação ambiental na internet foi essencial na revisão do PL. “A audiência pública acontece para que seja possível acatar as informações que a população tem a dizer e gerar mudanças na legislação. Mas as reivindicações expostas nesses contextos não foram efetivamente postas em consideração. A [alegação de que houve] participação popular foi duvidosa e mentirosa”, argumenta.

 

“A [alegação de que houve] participação popular foi duvidosa e mentirosa”.

 

Em geral, o que acontece dentro da Câmara Municipal não é facilmente e comumente acessado pela população. De acordo com Caroline Lorenzo, voluntária da ONG SOS Vale Encantado há mais de 20 anos, os moradores só tiveram conhecimento da proposta depois da realização da segunda audiência pública. “Ninguém estava sabendo. Quando soubemos, foi um susto. Mas ainda dava tempo de tentar reverter. E conseguimos”, conta. E mais uma vez, a tática foi a mesma: em momento nenhum, o PL citava o Vale Encantado. “Só quem conhecia os mapas sabia que era o Vale Encantado e entendeu que se tratava dos usos da área em jogo”, conta.

 

Ilustração da região elaborada por Jacileda Santos, disponível no artigo “Parque do Vale Encantado: mobilização popular por uma área de conservação em ambiente metropolitano”, escrito por  Angelo Serpa

 

Dados do Censo 2022 apontaram a capital baiana como a segunda menos arborizada do país – cerca de 1,5 milhão de pessoas vivem em ruas onde não há uma única árvore. Com cerca de 100 hectares, mais de duzentas espécies arbóreas e uma centena de espécies de aves, o parque ecológico do Vale Encantado é como um símbolo de resistência nesse cenário, sendo considerado fundamental para o fluxo higiênico e equilíbrio ecossistêmico da cidade para Caroline. “Ele abriga uma grande transferência de material genético, garantindo que espécies da fauna e flora não fiquem com consanguinidade e acabem morrendo no passar dos anos. Além disso, os fungos e bactérias que estão no solo têm papel fundamental para a fixação de carbono”, aponta. Desde o 2021, o Vale Encantado é reconhecido internacionalmente pela UNESCO como Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

 

Atividades de voluntários no Vale Encantado. Foto: SOS Vale Encantado

O episódio não é um acontecimento isolado, mas sim um retrato de uma questão mais ampla que desafia Salvador: a necessidade de proteger o que resta da sua Mata Atlântica em meio ao agravamento da crise climática. O primeiro projeto para implantação de um sistema viário no Vale Encantado, chamado de Via Atlântica, foi apresentado em 2008 — e foi barrado. A intervenção estava integrada a um pacote de intervenções urbanísticas conhecido como Salvador Capital Mundial, que prometia preparar Salvador para receber a Copa do Mundo, realizada naquele mesmo ano.

 

Mas, segundo a jornalista Juliana Ferreira, que trabalha como voluntária no Observatório do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU), esta não era sua real motivação. “Isso apenas foi proposto porque iria valorizar as áreas que este grupo imobiliário possuía. Os projetos de alterações no Vale Encantado são uma realidade antiga, com interesses antigos”, relembra. Ao longo dos últimos anos, outros projetos de lei foram mobilizados com o mesmo intuito e ou com interesses similares na região — como a construção do condomínio de lotes para fins residenciais ou comerciais da lei 9.509/2020.

 

Turismo granfino

 

Três ilhas ao redor de Salvador também são miradas pelo que o advogado Jailton Andrade chama de “jabuti do tamanho G”: Bom Jesus dos Passos, dos Frades e de Maré. Em vídeo publicado nas redes sociais, ele explica que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU) estabeleceu em 2008 as ZEIS, Zonas Especiais de Interesse Social, categorizando favelas, invasões e outras habitações precárias passíveis de regularização fundiária em cinco categorias. A nova legislação retira a diferenciação entre ZEIS-4 (áreas com assentamentos precários, ocupadas por pessoas de baixa renda) e ZEIS-5 (ocupadas por comunidades quilombolas e tradicionais ligadas à pesca e à mariscagem). Além de remover a segurança jurídica na ocupação dessas comunidades, Andrade defende que a lei é racista, na medida em que apaga do Plano de Desenvolvimento de Salvador a existência de comunidades quilombolas nas ilhas.

 

De acordo com o professor em arquitetura e urbanismo na UFBA, João Soares Pena, essas ilhas são territórios complexos e importantes. Ele acredita que retirar as comunidades quilombolas do zoneamento urbano, além de ser uma forma de apagamento dessas pessoas, se configura como uma violência. “Ao remover o status zona quilombola dessas áreas, você retira das pessoas a possibilidade de reivindicar a implantação de infraestruturas adequadas à sua própria realidade”, comenta.  

 

Pena analisa que esta não é uma situação exclusiva de Salvador. “No Brasil, temos uma política urbana que é pautada em um conceito de classe que, historicamente, desconsidera as agendas e as questões da população negra nesse país”. Ele analisa que os investimentos públicos costumam priorizar bairros do centro, habitados pela classe média branca, que também negligenciam a população das periferias e quilombolas.

 

Segundo integrantes da Associação de Moradores de Bom Jesus dos Passos, viver na ilha é sinônimo de dor.  “A gente perdeu e está perdendo a nossa essência, a nossa cultura. O sentimento de pertencimento foi destruído. Não temos poder nenhum”, reflete um dos representantes do grupo. Insegurança e medo são os principais sentimentos deles, mediante um cenário que chamam de “turismo predatório”. Algumas informações sobre a nova legislação dadas pelos moradores são conflitantes em relação ao texto, mostrando que constrói-se na ilha não só um império imobiliário, mas também uma arena desinformativa e instável. Eles temem novos impostos e desapropriação de seus imóveis. “Podem nos tirar de nossas casas a qualquer momento. Se eu não tivesse carinho por esse lugar, eu ia embora”, lamenta um morador.

 

“O sentimento de pertencimento foi destruído. Não temos poder nenhum”.

 

Vista aérea sobre a Ilha de Bom Jesus dos Passos – Foto: GOV BA

___________________

 

Luanda Costa estuda Jornalismo na Facom | UFBA.  Atua como repórter freelancer e social media. Apaixonada por contar histórias, tem interesse em temas como desinformação, direito à cidade e cultura.

 

O ponto de partida da pauta foi exposição de tensões entre desenvolvimento econômico, preservação ambiental e justiça social a partir da aprovação do Projeto de Lei 175/2024 pela  Câmara Municipal de Salvador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *