Com décadas de experiência, legado de Mota segue vivo através do próprio trabalho e do desenvolvimento dos seus pupilos
Altamirando Júnior (@altamirandojr)
Quanto vale a formação de um jogador de futebol de sucesso? O futebol baiano, ao longo da sua história, sempre teve fama de um estado revelador de grandes craques. Daqui, por exemplo, saíram Bebeto, David Luiz, Dida, e tantos outros jogadores de alto nível. No passado mais recente, um nome criado aqui na Bahia chama muita atenção, mas não pelo que faz em campo, e sim na gestão.
João Paulo Sampaio, de 47 anos, é coordenador de base do Palmeiras e responsável por gerar mais de R$1 bilhão em receitas para o clube alviverde com vendas de meninos formados nas categorias inferiores do time, apenas nos últimos dois anos. No meio da bola, há quem avalie o trabalho do cartola como um dos melhores do mundo. Não à toa, vendeu Endrick para o Real Madrid, da Espanha, Vitor Reis para o Manchester City e Estevão para o Chelsea, ambos da Inglaterra.
João Paulo (esq) e Mota (dir), durante podcast ‘Aprendendo Futebol’. Crédito: Reprodução
O sucesso de João é indiscutível. O que muitos não sabem, porém, é que ele trabalhou, se inspirou e aprendeu a grande parte das diretrizes do que aplica hoje com um outro nome baiano: Newton Mota. Considerado pelo próprio diretor do clube paulista como o “papa” das categorias de base, foi Mota quem o ajudou a dar os primeiros passos na gestão do futebol e ensinou, lá atrás, a base da filosofia aplicada no Palmeiras que vem encantando o mundo.
E não para por aí. Atualmente, diversos nomes baianos do futebol que estão em grandes equipes do Brasil em algum momento caminharam ao lado de Newton. Sérgio Passarinho (69), ex-jogador e hoje observador técnico do Palmeiras, não tem dúvidas. “Mota foi o precursor de tudo”.
Olhar clínico
Engenheiro civil de formação, Mota – como é conhecido – tem 74 anos de idade. Desses, a maioria dedicados ao futebol. O dirigente acumula passagens por Bahia, Vitória, Cruzeiro, Real Salvador e, mais recentemente, Jacuipense, onde está até hoje. Nos estudos com livros, os cálculos e ângulos da engenharia fizeram dele um cara bem sucedido. Mas foi no futebol onde detectou uma paixão e decidiu fazer disso a sua vida.
Apesar de não ter no currículo um curso de educação física, ciência do esporte ou qualquer outro da área, o que explica como um engenheiro civil conseguiu um olhar clínico para detectar talentos tem apenas uma explicação, na visão de Carlos Anunciação, comandante da captação de jovens atletas do Cruzeiro Esporte Clube. “É um dom. Na Copa São Paulo de Futebol Júnior (maior competição das categorias de base no Brasil), por exemplo, tá cheio de observadores, olheiros e empresários, mas não são todos que sequer conseguem encontrar algum talento de fato lá. Esse olhar certeiro não é ensinado em curso nenhum”, afirma.
Carlos Anunciação, quando trabalhava para o EC Vitória. Foto: Divulgação ECVitória
Carlão, como é chamado, acumula passagens também por Bahia e Vitória, sendo gerente e coordenador de base. O trabalho com Mota começou há muito tempo, ainda em 1984. “O que aconteceu de bom comigo dentro do Bahia e depois no Vitória é que eu trabalhei muito próximo dele”, destaca. “Eu tive a oportunidade de fazer a primeira avaliação do Vitória em São Paulo. A primeira Copa Nike quem estava lá? Eu. Então, sem dúvidas, eu fui oportunizado por Mota, que confiou no meu trabalho desde o início”, completa.
“Tinha coisas que Mota fazia para que o Vitória pudesse ir para competições que eu nunca soube de alguém fazer isso na época. Ele escrevia cartas à mão para os conselheiros do clube pedindo verba para poder pagar ônibus e alimentação na estrada para os garotos da base. E mesmo nessa era de sacrifício, o clube revelou muitos jogadores. Ele mudou a história do Vitória”, ressalta.
Cultura do futebol baiano
Sobre o sucesso de João Paulo Sampaio, Carlão destaca a importância da vivência com Mota para o cartola. “João é um cara inteligente. Ele assimilou muita coisa, ele teve uma escola maravilhosa. Ele levou a cultura do futebol baiano, de estratégia, de ousadia. É uma excelente representação dos profissionais da Bahia e da cultura de formação baiana”, afirma.
Cultura essa cultivada por Newton desde os anos 80. As semelhanças não são por acaso. “Mota é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheci na minha vida. Pensa muito rápido. Ele consegue identificar realmente o talento muito rápido. Só que ele tem uma coisa mais especial. Ele monta equipes. Ele consegue identificar os profissionais também”, afirma Sérgio Passarinho. “João foi atleta sob o comando de Mota. Depois fez estágio, virou treinador, passou a auxiliar e galgou. Sem dúvidas, ele conseguiu extrair de Mota muita coisa, mesmo”, acrescenta.
A relação entre João Paulo e Mota também é alvo de brincadeiras internas. Passarinho, que já trabalhou com os dois e, atualmente, labuta ao lado de João, não esconde as semelhanças entre ambos. “Tem algumas coisas que ele fala que a gente brinca até com ele, que parece o que Mota falava, as colocações. Então Newton conseguiu criar gerações”, enfatiza.
Sérgio Passarinho (esq), em ação pelo Palmeiras. Foto: Nadya Araújo / Botafogo-PB
Somente no Palmeiras, clube reconhecido pelo melhor trabalho de base do país, alguns nomes passaram pelo crivo de Mota, como Gilmey Aimberê, auxiliar técnico do sub-20, que foi captado por Mota, proveniente do Catuense, equipe baiana de Catu. Amilton Mendes, treinador do sub-16 do alviverde, foi preparador físico do Vitória e virou treinador sob o comando de Newton. Péricles Chamusca, que atualmente comanda o Neom SC, da Arábia Saudita, também trabalhou com Mota.
“Todos esses passaram pela formação de Mota, que era um trabalho que se destacava por ser profissional. Era necessário entender o que ele pensava. Newton era incansável, trabalhávamos de domingo a domingo. Agradeço muito a ele, porque me formou como profissional. Mota foi o precursor de tudo e João veio depois, dando
continuidade ao legado”, enfatiza Passarinho. “Muitos profissionais baianos foram formados, em algum momento, por Mota. Se eu for parar para citar todos aqui, poderíamos ficar a noite toda”, brinca e se orgulha Sérgio.
Trabalho no Jacuipense
Fora dos holofotes, Mota segue trabalhando e se destacando como formador, ainda nos dias de hoje. À frente da coordenação das categorias de base do Jacuipense, ele se orgulha dos números, que evidenciam o grande trabalho feito no Leão do Sisal. Apesar de ser uma equipe originalmente de Riachão de Jacuípe, como sugere o nome, a formação de jovens talentos é sediada em Salvador, visando estar mais próximo do mercado e dos parceiros comerciais.
O clube conta com seis jogadores formados nas categorias de base que hoje são titulares em grandes clubes da elite do futebol brasileiro. Desses seis, cinco são titulares. Entre eles, se destacam nomes como Wesley, do Internacional, por exemplo, que chegou a receber uma oferta de transferência na casa dos 9,5 milhões de euros feita por um clube da Rússia, nas últimas semanas. Além dele, o lateral Vanderlan, do Palmeiras, o volante Nilton, do Criciúma, Railan, lateral-direito do Cuiabá e Pablo, do Vitória, são jogadores revelados pelo time azul-grená.
Único campo existente no centro de treinamento das divisões de base do Jacuipense, em Salvador. Foto: Altamirando Júnior
O gestor se orgulha do feito e enaltece o trabalho executado. “Temos apenas um campo aqui, que é sintético, mas o trabalho é grande. Temos oito categorias, a partir dos 12 anos de idade. É um clube que já decidiu o Campeonato sub-20 e foi campeão do sub-17. Depois de Bahia e Vitória, temos o melhor trabalho de base do estado”, afirma Mota.
O sucesso, claro, trouxe reconhecimento para a equipe. “Muitos clubes vêm nos ver, porque sabem que aqui eles vão encontrar jogadores frutuosos”, revela. Além de jogadores, o clube também é destaque por formar profissionais. “Tem clube grande que vem buscar roupeiro aqui, treinador de goleiro e vários outros profissionais frutos do nosso projeto aqui na academia”, acrescenta.
Questionado sobre qual seria o mistério para um trabalho tão virtuoso, ele foi sincero. “É uma busca eficaz, mas que não é ampla. Nós não temos 10 observadores olhando no Brasil. A gente tem contatos porque conseguimos conquistar a confiança por parte das pessoas do futebol de que nós temos um bom olho. Assim, eles sabem que aqui a gente tem domínio sobre como trabalhar o atleta e, se destacando aqui, ele vai para um clube maior. É um excelente passo na carreira”, diz.
Walber Júnior, de 23 anos, atuou nas divisões de base do clube por quatro anos e pode conviver diariamente com Mota. Segundo ele, o trabalho de captação e análise pode ser observado no dia a dia e chama atenção. “Lembro de diversos, inúmeros jogadores que treinaram lá e saíram para grandes centros. Alguns fizeram período de testes em clubes da série A e se firmaram, outros não. Porque aí vai da situação de cada um. O que é evidente é que se há talento, o Jacuipense vai oportunizar experiências”, afirma o jovem.
Assim como muitos, Walber tentou chegar ao profissional, mas acabou tomando outro rumo na vida. Hoje, o empresário do setor de cosméticos é grato por todas as oportunidades que teve lá. “O futebol é complexo, é um funil muito grande. Nesse processo, ter pessoas com o conhecimento de futebol e gestão de Mota é uma vantagem. Tenho muito orgulho de ter feito parte da equipe e sei que o caminho que tomei foi o melhor pra mim”, conclui.
Os seis jogadores na série A brindam o trabalho das categorias de base do Jacuipense. A lista de profissionais que passaram pelas mãos de Mota segue crescendo. Longe da mídia e com muito trabalho, as categorias de base da Bahia têm um antes e depois do seu surgimento. O legado dele segue sendo desenvolvido por João Paulo Sampaio e todos os outros pupilos que trabalharam ao seu lado. Para Carlão, porém, falta reconhecimento do trabalho dele. “O futebol, por vezes, é ingrato. Ninguém nunca fez uma homenagem para Mota”, reclama. Com homenagem ou não, todos sabem quem é o mentor dos mentores no futebol de base baiano.
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Altamirando Júnior
Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, iniciou sua trajetória atuando como assessor de imprensa. Foi setorista de esportes no Jornal A Tarde e pesquisou sobre jornalismo cultural durante intercâmbio na Universidad del País Vasco, na Espanha. Atualmente, é monitor do Laboratório de Audiovisual da Faculdade de Comunicação da UFBA e estagiário de radiojornalismo na Rede Bahia.
A origem da matéria está em contar histórias e, assim, entender melhor como ocorreu a formação de um profissional que é considera um grande ícone nas categorias de base do futebol baiano. Chegando a, por exemplo, ser considerado o “papa” da base por João Paulo Sampaio, que desempenha um trabalho de alto nível à frente do Palmeiras, sendo aclamado nacional e internacionalmente. Entender, então, a figura que o ensinou muito do que aplica hoje é essencial para compreender o sucesso, associando passado e presente.