Os dilemas de uma geração nativa digital

Redes sociais, sobrecarga de informação e um mercado instável desenham a relação da Geração Z com a educação e o trabalho.

 

Larissa Lima (@163lima) e Nathalí Brasileiro (@nathalibrasileiro)

 

 

Em uma sociedade cada vez mais conectada, os dilemas e as preocupações com a educação se fazem cada vez mais presentes, especialmente quando o assunto é a Geração Z.

 

O termo ganhou força após um concurso online promovido pelo USA Today para nomear a geração que sucederia os Millennials. A Geração Z compreende quem nasceu entre o fim da década de 1990 e 2010. Diferentemente das gerações anteriores, esses jovens cresceram em um mundo onde a tecnologia digital era parte do cotidiano. Não precisaram, em sua grande maioria, de cursos básicos para entender como usar um computador ou celular, por exemplo.

 

No entanto, apesar da familiaridade com o ambiente digital, a geração enfrenta desafios reais em relação à educação e ao mercado de trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, cerca de um quinto das pessoas entre 15 e 24 anos no mundo são NEETs (Not in Education, Employment or Training, que em português significa “nem estudando, nem trabalhando, nem em treinamento”), conforme dados de 2023. Além disso, um relatório da PwC mostra que quatro em cada dez jovens da Geração Z estariam dispostos a pedir demissão e sobreviver com o seguro-desemprego.

 

No contexto da Bahia, esses desafios se refletem em dados regionais. O estado ocupa o 17º lugar entre as unidades federativas com maior inserção econômica de jovens que estudam ou trabalham, segundo o Ranking de Competitividade dos Estados, com base em dados do IBGE. Ainda de acordo com esse levantamento a Bahia tem o menor percentual de pessoas economicamente ativas com ensino superior no país, ocupando a última posição (27ª ) entre os 26 estados e o Distrito Federal.

Feito com Visme

Incertezas  

 

Para muitos jovens, essas condições criam uma sensação de insegurança e pressão constante. Como expressa Hellen Antunes, de 22 anos, recém-formada em Enfermagem pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB):

 

“Somos uma geração que nasceu já no meio do caos, sabe? A gente cresceu ouvindo sobre colapsos, crises, mudanças climáticas, fake news, pandemia, e ao mesmo tempo sempre teve um celular na mão. Então é como se a gente tivesse sido jogado num mundo acelerado demais, tendo que entender tudo muito cedo”, afirma.

 

Para ela, a sobrecarga de estímulos tem relação direta com a pressão por performance. “A gente é muito informado, temos acesso a muitas coisas, mas às vezes parece que isso mais atrapalha do que ajuda, porque vem junto com uma cobrança gigante. Todo mundo parece estar conquistando tudo muito rápido na internet, e aí rola essa sensação de que a gente tá ficando pra trás”, diz.

 

Mesmo quem ainda está no ensino básico já começa a sentir o impacto dessas expectativas. Raiane dos Santos, estudante do primeiro ano do ensino médio, explica que o desejo de prestar o Enem surge da vontade de fazer uma faculdade. “Acho que não é o único caminho, mas talvez o melhor”, afirmou. Apesar do contato frequente com a internet, ela relata que costuma estudar pelos livros, cadernos e resumos feitos pelos professores.

 

A combinação entre acesso digital e práticas tradicionais de estudo também aparece no relato de Jaciane Barbosa, de 22 anos, formada em Tecnólogo de Logística. Para ela, a tecnologia tem sido uma aliada importante para tornar o aprendizado mais acessível. “Atualmente eu consigo estudar através da tecnologia, existem várias modalidades de aulas entre as quais eu posso escolher. Seja vídeo aula ou apenas escutar o assunto sem precisar ficar lendo, se não entender eu volto”, conta.

 

Jaciane recorda que, ainda na escola, passava horas na biblioteca para conseguir revisar os conteúdos. Hoje, vê a tecnologia como facilitadora desse processo. Antes mesmo de ingressar no ensino superior, já se preocupava com as exigências do mercado. “Sempre me falavam ‘você tem que saber fazer uma planilha, um trabalho no Excel, no Word, tem que se adaptar’”, relata.  Ao entrar no mercado de trabalho, precisou lidar com inovações tecnológicas e com sistemas desconhecidos. Mesmo com apoio de colegas, conta que precisou estudar em casa para se adaptar às novas ferramentas de controle de estoque exigidas pela rotina profissional.

 

É preciso aprender a ser um nativo digital?

 

Professor do curso de Jornalismo e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Vitor Braga aponta que o cenário de incerteza vivido pela Geração Z exige um novo tipo de letramento — não apenas escolar, mas também digital, emocional e social.

 

“Desenvolver esse letramento midiático é importante para navegar neste ecossistema de forma crítica e criativa. Porque a gente sabe os desafios que é o processo de aprendizagem para um adolescente hoje. Ele está o tempo inteiro exposto a outras linguagens, a múltiplas plataformas, e isso afeta diretamente a atenção e a forma como se aprende”, explica.

 

Segundo o pesquisador, o conhecimento formal frequentemente se entrelaça com experiências digitais. “Tem pesquisas com adolescentes que apontam que eles aprenderam, aprimoraram ou reforçaram o inglês a partir da participação de jogos online. Porque esses jogos são todos em inglês, e eles precisam interagir, entender, falar. Isso ajuda muito”, afirma.

 

Essas novas formas de aprender, no entanto, também provocam dilemas, especialmente quando chega o momento de escolher uma carreira.

 

“É possível que essas vivências digitais influenciem as escolhas profissionais. O jovem começa a monetizar conteúdo, a ter retorno, e passa a vislumbrar ali um caminho viável. Só que isso também gera uma ilusão. Nem todo criador consegue viver disso. As plataformas são ambientes extremamente competitivos e instáveis. Uma regra muda e o que antes era uma renda pode deixar de existir”, alerta.

 

Ao comentar o novo imaginário profissional da juventude, Vitor destacou o impacto da presença digital nas decisões de carreira. “Tem muitos adolescentes que já monetizam conteúdo online. São influenciadores mirins, mas já têm público, já recebem por isso. E é claro que isso influencia as escolhas deles: seja aprimorando o conteúdo com uma formação tradicional, seja buscando cursos rápidos. O criador de conteúdo virou uma carreira almejada”, comenta.

 

 

A falsa promessa do “empreendedorismo de si”

 

Além do impacto das redes sociais, o professor e pesquisador Vitor Braga chama atenção para um discurso que tem ganhado força entre os jovens: o da autonomia como sinônimo de liberdade. Para ele, há um risco embutido nesse tipo de glamourização.

 

“Há uma glamourização do empreendedorismo digital como se fosse a saída para tudo. Mas é um mercado extremamente competitivo e sujeito a regras que mudam do dia pra noite. Tem muito influenciador ensinando adolescente a investir na bolsa sem ter noção da realidade socioeconômica de quem tá assistindo”, alerta.

 

Nesse mesmo sentido, Braga critica a forma como a ideia de meritocracia vem sendo embalada para jovens de baixa renda, especialmente por meio das redes. “Tem gente que acredita que é empreendedor só porque dirige um Uber. Mas o verdadeiro empreendedor é o dono da plataforma, não quem trabalha 12 horas por dia. Essa narrativa de empreendedorismo de si mesmo esconde as desigualdades brutais do Brasil. E isso chega nos jovens como se fosse motivação”, complementa.

 

 

Problemas que vêm desde a base

 

Se, por um lado, as plataformas digitais seduzem pela promessa de liberdade e autonomia, por outro, o cenário educacional brasileiro segue revelando obstáculos históricos que impactam diretamente as possibilidades desses jovens. Para Salete Cordeiro, doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da UFBA e integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias(GEC), não é possível discutir o futuro da Geração Z sem olhar para as desigualdades estruturais da escola pública.

 

Um dos exemplos apontados pela pesquisadora é o debate sobre a proibição do uso de celulares nas escolas, que desconsidera o contexto da cultura digital e as próprias contradições das políticas públicas atuais.

 

Salete afirma que a forma como a decisão foi tomada é muito simplista, especialmente “em relação às políticas públicas desse mesmo governo, que buscam a inclusão digital em todo o território nacional e a formação de jovens e profissionais para o mundo do trabalho. O contexto contemporâneo é o contexto da cultura digital”. Como a escola pública atende a maior parte dessa juventude, ela defende que esse deveria ser o espaço para refletir sobre o que são as tecnologias e aprender a utilizá-las.

 

Assim como o professor Vitor Braga, a pesquisadora também destaca que o uso das tecnologias pode ser um importante meio de inclusão educacional. Segundo ela, crianças e adolescentes que têm dificuldade de concentração em métodos tradicionais tendem a responder melhor a propostas baseadas em projetos e no uso de ferramentas digitais.

 

“Porque a gente não aprende da mesma maneira. Nós aprendemos de modos diferentes. Daí tem um autor que vai dizer assim: ‘Apesar do método, a criança aprende, né?’ Mas a gente sabe que muitos não aprendem”, afirma.

 

Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2023 mostram que cerca de 398 municípios baianos têm menos de 20% dos alunos com aprendizado adequado em matemática no 9º ano. Em língua portuguesa, 47% dos estudantes tiveram desempenho considerado insuficiente, e apenas 23% atingiram um nível adequado de aprendizado em todo o estado.

 

A Bahia ficou em 4º lugar entre as redes públicas brasileiras na redação do Enem de 2023, segundo o Ranking de Competitividade dos Estados desse mesmo ano. Um desempenho positivo, no entanto, ao analisar a média geral das provas o estado caiu para a 6ª posição entre os estados do Nordeste. Em Salvador, capital e maior cidade, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) atingiu 5,3, superando a meta projetada de 5,1 para o município em 2023, mas ainda abaixo do ideal para a qualidade do ensino.

 

Esses dados apontam dificuldades enfrentadas pelas escolas na adequação da formação tanto para os Anos Finais do Ensino Fundamental quanto o Ensino Médio. Desafios que perpassam e são agravados pela nossa realidade social e socioeconômica também, pois menos de 20% dos estudantes que atingem o percentual de aprendizado adequado são pretos ou com baixos níveis econômicos. 

 

Neste contexto, a pesquisadora defende que é urgente transformar a maneira como se ensina, aproximando os conteúdos escolares da realidade digital e social dos estudantes. “É necessário a gente repensar esse modo de educar, que o pensar  não pode mais estar apartado do conhecimento, de saber que tecnologia é essa. Então, acho que nunca foi tão necessário na educação que a gente transforme os espaços educativos em espaços de experimentação, de mão na massa”, pontua.

 

 Para ele, colocar os estudantes como protagonistas é essencial para que desenvolvam uma relação crítica e criativa com as tecnologias. “Porque no momento que você coloca esses estudantes para produzir um programa de rádio, editar um vídeo, utilizar IA, eles vão se apropriando dessa linguagem por dentro. É uma formação crítica, uma formação para compreender o contexto em que se vive, entender o que está em jogo, quais são as disputas”, conclui a especialista. 

 

*O impressão digital tentou contato com a Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria da Educação de Salvador em busca de informações sobre a situação atual do estado e município, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.

 


Larissa Lima – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, repórter voluntária na Agência de Notícias Ciência e Cultura da FACOM e estagiária do Projeto Conectar Cultural.

 

Nathalí Brasileiro – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, estagiária do BN Hall, coluna social do site Bahia Notícias, e uma das fundadoras do AGNCast, da Agência de Notícias da UFBA.

 

A motivação para a escolha da pauta surgiu a partir da observação das demandas e desafios enfrentados pela Geração Z em relação à educação e ao mercado de trabalho. A transição entre formação acadêmica e inserção profissional tem gerado dilemas recorrentes, especialmente diante das mudanças tecnológicas e sociais. A matéria busca refletir sobre esse cenário.

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