Localizado em Lauro de Freitas, na RMS, o Quingoma possui uma área reconhecida pelo Incra de 1.225 hectares, mas a comunidade ainda pressiona para que estudo fundiário seja finalizado
Raquel Franco
Em meio à expansão urbana, a comunidade do Quilombo Quingoma – localizado em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (BA) – enfrenta uma série de dificuldades, como a pressão da especulação imobiliária, a falta de infraestrutura básica e a luta pela titulação das terras.
As 650 famílias que vivem na área do quilombo mais antigo do país, com atividades registradas desde 1569, buscam preservar a rica história e cultura em um território que é rico em biodiversidade, transmitindo de geração em geração tradições e costumes que moldaram a identidade do seu povo.
A comunidade foi reconhecida oficialmente como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2013, mas encontra obstáculos significativos para garantir a titulação de seu território e preservar seu modo de vida.

Rejane Rodrigues, líder comunitária do Quingoma, relata que a certificação quilombola foi um marco importante na luta da comunidade, mas o processo de titulação das terras tem sido lento e marcado por disputas:
“Recebi a certidão da Fundação Cultural Palmares e dei entrada no Incra em 2013 para que a titulação chegasse, né? Mas a gente estava mexendo num vespeiro que é o território do Quilombo Quingoma. Então são 10 anos de várias perdas.”
Em 2015, a construção da Via Metropolitana intensificou os conflitos com a comunidade. A Concessionária Bahia Norte, responsável pela obra, recebeu investimentos públicos de R$220 milhões para a construção de 11,2 km de vias que atravessam diretamente a área do Quingoma, o que causou diversos impactos negativos para o quilombo. Trinta famílias foram afetadas diretamente, tendo que abrir mão de suas casas, recebendo indenizações de R$30.000 a R$150.000 reais.

Rejane conta que, apesar dos protestos da população, a obra continuou e teve consequências devastadoras:
“Mataram, literalmente, cinco rios e árvores centenárias. Bichos foram cortados, transportados. Nossas casas foram invadidas.”
A fragmentação do território, a perda de áreas verdes e de cultivo, a intensificação do tráfego de veículos pesados e a cobrança de pedágio para chegar em casa afetam diretamente a qualidade de vida dos moradores.
Em paralelo, em 2016, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), fundamental para o processo de titulação, concluído parcialmente até então. Dos documentos que o compõe, o Incra entregou, em 2017, o estudo antropológico de contextualização histórica e geográfica, especificando que a área do Quilombo Quingoma tem uma abrangência de 1.225 hectares.
Nesse mesmo ano, a Casa Civil do Governo do Estado da Bahia fez uma contraproposta para titular 284,76 hectares, o que representa apenas 23% do território quilombola reconhecido pelo Incra. A comunidade não acatou e pressiona para que o estudo fundiário seja finalizado e o RTID seja concluído.
Condomínio
Está em curso, em parte do território do quilombo, a construção do “Joanes Parque”, um condomínio com lotes a partir de 130m². O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública em abril deste ano para interromper o loteamento do empreendimento imobiliário. No entanto, as obras seguem a todo vapor. A MAC Empreendimentos divulgou uma nota de esclarecimento em seu site afirmando que a construção está dentro da legislação vigente e que todas as licenças necessárias foram concedidas pelos órgãos competentes.
Segundo o Incra, a redução do orçamento nos últimos anos e a complexidade de casos como o do Quingoma, que envolve a expansão urbana e conflitos fundiários, têm dificultado o avanço da titulação. O Incra tem estabelecido critérios de prioridade para os processos de titulação, como a existência de ações judiciais e a ocorrência de violações de direitos humanos. A comunidade do Quingoma encontra-se em uma situação complexa e está entre as prioridades do órgão, que tem discutido com o governo da Bahia uma solução.
A titulação das terras é fundamental para garantir a segurança jurídica da comunidade e promover o desenvolvimento sustentável. Com a titulação, o Quilombo Quingoma poderá acessar programas e projetos dos governos federal, estadual e municipal, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Quilombos (PDSQ).
A inundação silenciosa e a perda da subsistência

A comunidade quilombola Quingoma enfrenta um desafio ambiental singular: a inundação gradual de suas terras, resultado da obstrução de um brejo. A área é um ponto de nascente, mas, por ser em território plano, se forma uma área alagadiça, com características de pântano.
A origem desse problema remonta a 2018. Moradores relatam que, a partir daquele ano, duas empresas de construção civil, como a MRV e outra não identificada, iniciaram obras dentro da área do quilombo e obstruíram o escoamento natural dessa água. A cada nova construção, novas barreiras eram erguidas, intensificando o processo de inundação. Desde então o local, que antes era produtivo e o meio de sustento de algumas famílias do quilombo, está inundando e se transformando em um lago em formato de Y que já atinge 30 metros de profundidade.


Essa transformação drástica do território tem tido consequências profundas para a vida e a cultura da comunidade. As áreas antes utilizadas para a agricultura, onde eram cultivadas diversas frutas, foram completamente inundadas. Essa perda representa não apenas uma redução na produção de alimentos, mas também um ataque à identidade cultural da comunidade, profundamente ligada à terra e à agricultura. Um morador da comunidade, que é agricultor, descreve com tristeza a perda de sua plantação:
“Onde está essa água toda, antes era tudo terra, não era água. A água subiu tanto que virou um rio, com duas partes. Ali a gente tinha de tudo, banana, jaca, graviola e vários tipos de cana. Eu tinha uma plantação bem grande por aqui, e ela era pra gente se alimentar e pra vender. A inundação acabou com tudo, só sobrou a parte de cima. A gente anda assustado.”
A comunidade vive com a incerteza sobre o futuro. A inundação continua avançando, e a preocupação é que as casas sejam as próximas a serem atingidas.
Segundo Lafayette Dantas da Luz, especialista em recursos hídricos e professor do departamento de Engenharia Ambiental da UFBA, o alagamento é resultado da ação humana e pode continuar subindo. Existem técnicas de engenharia que permitem o represamento das águas de forma responsável, porém, a falta desse planejamento prévio com estudo topográfico pode resultar em graves consequências, que vão muito além do que os olhos podem enxergar.
Ele explica que o alagamento de uma área que normalmente seria úmida causa uma modificação na relação entre as águas superficiais e subterrâneas, pois altera a forma como a água volta para atmosfera.

“O que acontece: tem um acúmulo de água, que de alguma forma vai arrumar um caminho para ir para as posições mais baixas por conta da gravidade. Então ela pode subterraneamente aparecer em algum lugar mais adiante e continuar ainda talvez alimentando algum riacho, algum córrego. Porém você está tendo uma perda de água devido à exposição da água por esse espelho d’água para atmosfera. Isso aí pode causar uma perda muito grande de água, a água é aquecida pelo sol, tem contato com o sol, ventos etc. Faz com que uma grande quantidade de água seja liberada para atmosfera.”
Falta de acesso a direitos básicos

A falta de infraestrutura básica, como acesso à água potável, saneamento básico e energia elétrica, também é um desafio constante para a comunidade. A ausência de políticas públicas adequadas para as comunidades tradicionais agrava ainda mais a situação.
Educação
Dentro do Quilombo Quingoma funcionam duas creches e uma escola de ensino fundamental I, que vai do 1° ao 5 ° ano. Para chegar ao colégio do ensino fundamental II, os estudantes têm acesso a uma van escolar. Para o ensino médio e superior, é necessário pagar o transporte para ir às aulas. A comunidade não é atendida pelo transporte coletivo municipal e tem que se deslocar de carro próprio, a pé, em transporte por aplicativo ou pelas vans de cooperativas.
A falta de professores qualificados, a infraestrutura precária das escolas e a evasão escolar são problemas recorrentes. Rejane Rodrigues, líder da comunidade, destaca a importância da educação para o futuro dos jovens quilombolas:
“A educação é a chave para a nossa libertação. A gente quer que nossos filhos tenham as mesmas oportunidades que os outros jovens.”
Ela conta que, para cursar o ensino médio, caminhava 5km até a escola.
Saúde
A falta de unidades básicas de saúde, de médicos e de medicamentos básicos dificulta o acesso à saúde para os moradores. A Unidade de Saúde da Família Caji/Vida Nova é a mais próxima do Quilombo, a 4km de distância. A falta de transporte dificulta ainda mais o deslocamento até o posto, principalmente para as pessoas que sofrem de hipertensão, diabetes e anemia falciforme.

O Hospital Metropolitano, construído pelo governo do estado e inaugurado em 2021, está dentro do quilombo, mas não oferece serviços especificamente para a sua população. A Secretaria da Saúde do estado, responsável pelo Hospital Metropolitano, esclareceu por meio de nota para a nossa reportagem, que a unidade presta atendimento a toda e qualquer pessoa que tenha o perfil de assistência ofertado, incluindo a comunidade do Quingoma. No entanto, a secretaria ressalta a importância da “atenção primária” como porta de entrada para os serviços de saúde e a necessidade de os municípios oferecerem esses serviços.
A comunidade do Quingoma, por sua vez, reivindica a melhoria do acesso aos serviços de saúde, incluindo a construção de uma unidade básica de saúde equipada para atender às suas necessidades específicas, além da regularização do atendimento médico e da distribuição de medicamentos. Entramos em contato com a Prefeitura de Lauro de Freitas, através da sua Ouvidoria, porém, não conseguimos obter informações.
Moradia e Saneamento Básico


A comunidade Quilombola Quingoma sofre com a falta de moradia digna e de saneamento básico adequado. Muitas famílias vivem em casas de taipa com condições precárias, sem acesso à água potável e ao esgotamento sanitário. A comunidade reivindica a construção de casas populares com infraestrutura básica adequada, além da regularização da posse das terras e da instalação de redes de água e esgoto.
“A gente precisa de mais escolas, de postos de saúde e de melhores condições de vida. A educação é importante para o futuro dos nossos filhos, a saúde é essencial para o bem-estar da comunidade e a moradia digna é um direito básico de todos.”, afirma Rejane Rodrigues.
Diana Matos, mestre em Geografia (UFBA) especializada em povos tradicionais, ressalta que o Plano Municipal de Saneamento Básico do município de Lauro de Freitas, desde 2017, propõe intervenções voltadas para a construção desses vetores de expansão urbana no perímetro do Quingoma. “O Plano de Desenvolvimento Urbano do município trata o quilombo como um bairro, desta forma, nota-se que não há um plano específico, no âmbito municipal, para que o território de 1.225 hectares reivindicado pela comunidade seja preservado e garantido.”
No período de produção da reportagem, ocorreu um grave acidente na comunidade. Na noite do dia 30 de agosto faltou energia no Quilombo e uma família, que morava em uma casa improvisada de madeira e lona, morreu vítima de um incêndio provocado pelas velas acesas. A Associação do Quilombo Quingoma divulgou uma nota de pesar lamentando a tragédia:
Dilema
A comunidade quilombola Quingoma, diante dos desafios impostos pela inundação de suas terras e a perda de sua principal fonte de subsistência, a agricultura, encontra-se em uma situação de vulnerabilidade que exige ações efetivas por parte do poder público. No entanto, a comunidade enfrenta um dilema: a dependência crescente do assistencialismo em contraste com a necessidade de políticas públicas estruturais que garantam seus direitos e promovam o desenvolvimento sustentável.
O assistencialismo, embora importante em momentos de crise, não é uma solução de longo prazo. A doação de alimentos, a distribuição de kits de higiene e outras ações emergenciais são medidas paliativas que não resolvem as causas dos problemas.
Em 1989 entrou em vigor, internacionalmente, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que especifica quem são os povos indígenas e tradicionais e quais são os seus direitos. O documento indica a obrigação dos governos em reconhecer e proteger essas comunidades, além de prever a consulta a essa população sempre que alguma obra, ação, política ou programa possa afetá-los, tanto aquelas desenvolvidas pelo setor público quanto pelo setor privado.

Diana Matos considera fundamental a efetivação de políticas públicas eficazes que atendam o Quilombo Quingoma:
“Acredito ser isto que a comunidade reivindica, projetos e programas que garantam a soberania alimentar do quilombo, como, por exemplo, programas de fortalecimento a produção de alimentos provenientes da agricultura familiar; kits e equipamentos que possibilitem, além da agricultura, a criação de animais, a pesca e mariscagem; assistência médica aos moradores da comunidade; uma escola de educação escolar quilombola de qualidade; capacitação profissional para a juventude aprimorar conhecimentos e aplicar na comunidade; acesso a água potável e a energia elétrica; garantia do direito à moradia e à mobilidade. Ainda no âmbito das políticas públicas, destaco a garantia pelo seu território alinhado à necessidade de um plano específico de desenvolvimento sustentável pautado no modo de vida tradicional da própria comunidade, que possibilite autonomia financeira às famílias da comunidade.”
Jornada de resistência: a frente de luta pelo Quilombo Quingoma
A necessidade de uma ação coletiva se tornou evidente após uma série de ataques e ameaças à comunidade. Em abril de 2023, a liderança do Quilombo Quingoma, Rejane Rodrigues, sofreu graves ameaças, o que motivou a comunidade a buscar proteção e apoio. Diante desse contexto, no dia 5 de maio de 2024, em Salvador, ocorreu uma reunião com movimentos sociais, entidades e lideranças para discutir estratégias e construir uma ampla frente de resistência em apoio ao Quingoma. A partir desse encontro, a frente foi oficialmente formada, com o objetivo de fortalecer a luta pela titulação do território e proteger as lideranças quilombolas.

Rejane ressalta a importância da união e da organização para alcançar seus objetivos:
“A gente precisa estar junto para lutar pelos nossos direitos. A nossa força está na nossa união.”
Uma das principais ações da frente de resistência é a visibilização da luta do Quingoma. Através de mobilizações, manifestações e a produção de materiais informativos, a comunidade busca sensibilizar a sociedade e a opinião pública para a importância da causa quilombola. A articulação com outros movimentos sociais, como os movimentos indígenas e de mulheres, também é fundamental para fortalecer a luta por justiça social e ambiental.
Raquel Franco é produtora cultural, fotógrafa e jornalista em formação. Seu interesse em realizar a reportagem sobre o Quilombo Quingoma surgiu pela insurgência da pauta nos veículos de imprensa e nas redes sociais.