Uso de apps nas cidades gera alerta sobre privacidade dos usuários

Iniciativas de tecnologia na mobilidade urbana de Salvador ganham popularidade, mas especialistas apontam os riscos da captura excessiva de dados e a falta de transparência 

 

Anne Meire Ribeiro (@annemeireribeiro)

 

Os aplicativos invadiram a vida urbana e em Salvador não seria diferente. A capital foi considerada como a mais inteligente do Nordeste de acordo com o Ranking Connected Smart Cities 2024. Muitas vezes, a praticidade oferecida por esses serviços são compradas através de informações relevantes dos cidadãos.

 

O conceito de smart city tem sido usado por intelectuais em todo o mundo para falar de estratégias tecnológicas para melhorar a vida urbana. As iniciativas são construídas em diferentes frentes, como boa qualidade de internet no território, ou um semáforo que funciona dependendo do horário e fluxo de carros.

 

No caso de Salvador, iniciativas em mobilidade urbana estão cada vez mais digitais, como o uso de aplicativos, vias de exemplo, o Zul+, o Cittamobi e o Kim2.0, que são parcerias entre empresas privadas com a prefeitura, nenhum deles tem uso obrigatório. 

Interface de aplicativo de mobilidade urbana. Crédito: Imagem gerada pelo ChatGPT para IOS

No geral, os aplicativos são similares. O usuário precisa realizar o cadastro, aceitar os termos e condições para utilizar o serviço. Os dados solicitados variam, mas os  mais comuns são: CPF, nome completo, e-mail e localização. 

 

Segundo um relatório feito no final de 2023 pela empresa de tecnologia, NordVPN, uma política de privacidade de um site brasileiro tem, em média, 5.880 palavras. As análises do estudo constataram que um leitor levaria em média 25 minutos para ler todo o documento. O estudo foi feito com os 20 sites mais visitados em 19 países.

 

Philipe Pugliesi, estudante de direito, diz que começou a ler parte dos contratos dos aplicativos que usa, após entender as implicações judiciais disso. ‘’Se aquele contrato não for lido antes com detalhe, é possível que eu acabe permitindo algo que, caso eu não gostasse de alguma atitude de política daquele mesmo sistema, eu não pudesse contestar nada, porque eu assinei que acordava’’.

 

Por exemplo, o Zul +, aplicativo de estacionamento da cidade, prevê nos Termos e Condições o compartilhamento das informações com afiliadas, subsidiarias, prestadores de serviços e parceiros da provedora, mas não explicita exatamente quem são essas figuras.

 

Ainda no documento, os exemplos de possíveis prestadores são: serviços de nuvem, plataformas de marketing e provedores de análise de dados. O aplicativo faz parte do grupo Estapar, uma das maiores empresas de estacionamento da América Latina.

 

Sobre o compartilhamento, a Secretaria Municipal de Informação e Tecnologia (SEMIT) informou que eles são feitos através da integração dos dados do aplicativo com as ferramentas e soluções da prefeitura, nas afiliadas e subsidiárias da provedora. 

 

Mesmo com as praticidades oferecidas pelo aplicativo, os usuários ainda alegam falhas na comunicação entre o software e a Superintendência de Trânsito de Salvador (Transalvador). As queixas foram registradas na plataforma Reclame Aqui, no geral contam situações em que houve cobrança indevida.

 

 

Segundo André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço, o grande desafio é fazer uma cidade inteligente e preservar a privacidade dos cidadãos. 

 

”O limite para a coleta de dados é a vida privada. Uma coisa é pegar os dados de forma anônima de pessoas para melhorar, por exemplo, o serviço de ônibus. Só que isso pode ser perigoso, então, as cidades devem ser inteligentes no limite em que elas conseguem manter ainda uma proteção da privacidade das pessoas”, disse o professor. 

 

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi um marco na proteção dos direitos fundamentais de liberdade e privacidade dos brasileiros. A legislação prevê muitos direitos importantes, entre eles: a anonimização; o consentimento, o usuário deve autorizar o tratamento dos dados pessoais para uma finalidade determinada e a eliminação, que garante a exclusão de um conjunto de dados armazenados em banco de dados, independentemente do procedimento empregado. 

 

 

Muitos usuários relatam que não sentem autonomia no compartilhamento dos dados pessoais. Segundo um relato de Lemos, uma vez levando o filho ao dentista, o edifício do consultório solicitava reconhecimento facial, se eles não disponibilizassem isso, não acessariam o prédio, logo seriam punidos. 

 

Isso não é um caso isolado, se o motorista não pagar a zona azul através do aplicativo ou do funcionário que nem sempre está nas zonas, ele será multado. Ou se o comprador não fornecer o CPF na farmácia não receberá desconto. 

 

‘’A sociedade digital nos compele de alguma forma a fornecer dados pessoais acreditando que essas informações serão respeitadas. A LGPD nos protege, mas na sociedade, com plataformização, a dataficação e toda a performance dos algoritmos, nós somos obrigados a fornecer os dados, senão não fazemos absolutamente nada’’, completa Lemos. 

 

O Cittamobi, aplicativo de monitoramento dos ônibus utilizado em Salvador, estabelece nos termos e condições a coleta de dois tipos de dados: os essenciais e os adicionais. Os essenciais, são aqueles imprescindíveis para a realização do serviço. Os adicionais são captados dos dispositivos que realizarem a compra de bilhetes. 

 

“A Cittamobi poderá coletar algumas informações automaticamente sobre os dispositivos a partir dos quais o usuário acessa o aplicativo. Dentre essas informações estão endereços IP, tipo de navegador e idioma, provedor de serviços de Internet (ISP), sistema operacional, informações sobre data e horário, dados sobre a sequência de cliques, fabricante do dispositivo, operadora, modelo, redes Wi-Fi e número de telefone”, conforme o documento.

Nuvem de palavras gerada a partir dos Termos e Condições do aplicativo Cittamobi pelo WordArt

Salvador tem uma Política Municipal de Segurança da Informação (PSI), instituída por um decreto em janeiro de 2024, cujo objetivo é garantir a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade dos dados dos cidadãos da cidade. A norma está amparada na LGPD. Além do PSI, a cidade também tem o Comitê Gestor de Segurança da Informação (CGSI), responsável pela aplicação e supervisão das diretrizes de segurança. 

 

Para o arquiteto e professor da PUC-PR, Rodrigo Firmino, caminhamos para uma sociedade cada vez mais vigiada, mas devemos evitar isso. No Paraná , por exemplo, um decreto demandou o uso de reconhecimento facial nas escolas públicas do estado para a realização da lista de presença. Mais tarde, descobriram que estava testando sistemas monitoramento das emoções dos alunos. 

 

A utilização de sistemas tecnológicos, como qualquer tipo de leitura biométrica, ou do uso de câmeras, por exemplo, indicam que os caminhos  adotados pelas autoridades e pelas empresas têm  sido de uma sociedade mais vigiada. Tudo sob a ilusão de que uma sociedade controlada por algoritmos e por máquinas é livre de falhas e que supostamente poderia funcionar melhor e solucionar vários problemas. Alguns autores chamam isso de tecnosoluciosnismo, que essa ilusão de que as tecnologias são neutras”, declarou.

 

______________________________________________________________________________

Anne Meire Ribeiro estuda jornalismo na Facom/UFBA. Atua como radialista, roteirista e repórter freelancer. Apaixonada por comunicação, ama temas relacionados a direitos humanos, cultura e representatividade.

 

A ideia da pauta surgiu a partir da leitura  do artigo “Interfaces Maliciosas: Estratégias de Coleta de Dados Pessoais em Aplicativos“, de André Lemos e Daniel Marques.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *