Em meio ao concreto das cidades, territórios de cura física, espiritual e de práticas sagradas resistem
Gerônimo Santos (@hessoza) e Jamile Araújo (@jamis.araujos)
Em vários pontos da cidade de Salvador, entre o concreto das avenidas, amontoado de prédios e o som apressado dos carros, algumas áreas verdes resistem. Espalhados em diferentes regiões, esses locais, mais do que o verde, abrigam raízes – de árvores e de histórias. Na capital baiana, há 90 milhões de metros quadrados de áreas verdes, o equivalente a quase 13 mil campos de futebol, conforme dados da Secretaria Estadual de Sustentabilidade, Resiliência, Bem-estar e Proteção Animal (Secis). Isso representa cerca de 30 m² por habitante.
Nem todo soteropolitano lembra que esses pulmões urbanos presentes na cidade possibilitam o desenvolvimento de atividades voltadas para melhorar o bem-estar. Além disso, se esquecem que nesses locais crescem plantas que carregam em cada folha a possibilidade de cura física, mental e espiritual.
A Universidade Federal da Bahia (UFBA), tem, em todos os seus campi, áreas de reserva de mata atlântica que auxiliam no desenvolvimento das aulas práticas e de pesquisas voltadas à preservação do meio ambiente, estudos que analisam plantas, solo e a grande fauna existente dentro das áreas que são de responsabilidade da Superintendência de Meio Ambiente e Infraestrutura (SUMAI).
De acordo com o coordenador de Meio Ambiente da SUMAI, Antônio Lobo, desde 2014 mais de duas mil árvores foram plantadas nas áreas da universidade. Lobo explica que esse tipo de atividade é pensada para agregar a comunidade estudantil e comunidade externa. “O objetivo é criar nos usuários dessas áreas na universidade o senso de pertencimento, o qual gera uma necessidade de preservação e cuidado desses espaços”, comenta Lobo.

A SUMAI desenvolve projetos voltados para o fortalecimento, expansão e preservação dos mais de 45 hectares de mata existentes entre os campi de Ondina, São Lázaro e Federação. Através de ações que tiveram alto índice de aceitação pela comunidade acadêmica e comunidade externa, a UFBA faz parte da Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P), do Ministério do Meio Ambiente, que premia iniciativas bem sucedidas dentro de órgão públicos.
Entre as iniciativas está o projeto de replantio de árvores nativas dentro da universidade. Atualmente, a superintendência vem desenvolvendo o projeto Verde Cidadania, que mapeia as áreas que têm revestimento em concreto e transforma estes locais em jardins, que ajudam na redução da temperatura e auxilia na parte de drenagem em época de chuvas.
O coordenador reforça que as áreas verdes da UFBA são locais que agregam e fortalecem manifestações religiosas. “É recorrente praticantes de religiões de matriz africana utilizarem as áreas da universidade para retirar folhas usadas em rituais e deixarem oferendas no local”, diz Lobo. Ele enfatiza que sem a interseção entre comunidade e meio ambiente não há como fazer educação consciente.
Outro local importante na cidade é o Parque São Bartolomeu (localizado entre Pirajá e a Enseada do Cabrito, Subúrbio Ferroviário). Assim como, em outras áreas verdes da grande metrópole, natureza e espiritualidade se entrelaçam em um mesmo chão, onde cada planta e folhas que crescem e resistem têm significado valioso para o saber ancestral. Em tempos de crise climática e exclusão urbana, esses espaços são mais do que paisagem: são cura, memória e um pedaço de verde, no qual a população reencontra sua identidade.
Saberes que não cabem no laboratório
Entre as muitas funções das plantas nas cidades, uma escapa aos manuais técnicos: a espiritual. Em muitos terreiros, casas de cura e comunidades tradicionais, as folhas têm voz, axé e propósito. É nessa interseção entre ciência e tradição que nasceu o podcast Axé das Plantas, desdobramento do projeto “Neurofarmacologia de Terreiro”, vinculado ao Instituto de Ciências da Saúde da UFBA.

O pesquisador Victor Silva, pós-doutor em neurofarmacologia e um dos idealizadores do projeto, lembra que a sabedoria das comunidades é ancestral e que é a academia que precisa aprender a ouvir. “Temos muito o que aprender com essas pessoas que têm um olhar sutil, humano e preparado, que todo o maquinário de um laboratório não detectaria jamais”.
Em campo, os pesquisadores perguntavam como se usava determinada planta, e ouviam respostas que envolviam defumações, banhos, orações e associações com outras ervas ou até partes de animais. “Essas práticas não cabem no protocolo científico, mas são eficazes porque vêm de um saber experiencial e coletivo. Desmerecer os saberes tradicionais seria a morte de um caminho trilhado com sabedoria e prática popular.”, reforça o co-criador do podcast Axé das Plantas.
Além de compartilhar informações sobre as ervas e suas propriedades terapêuticas ligadas, por exemplo, ao sistema nervoso e ao acidente vascular cerebral (AVC), o projeto, através do podcast, que lançou sua segunda edição no mês de julho de 2025, devolve às comunidades tradicionais os conhecimentos captados em pesquisas de campo, na qual a equipe ouvia mestres e mestras de comunidades tradicionais, que trabalham há décadas com plantas para o desenvolvimento e aprimoração do sagrado.
Educação ambiental: do invisível ao sagrado
A educadora ambiental e bióloga Edilaine Melo, professora no IFBaiano em Santa Inês, defende que a cidade precisa reaprender a enxergar suas plantas. Segundo ela, há um fenômeno de “impercepção botânica”, uma espécie de cegueira urbana que impede o reconhecimento das espécies que cercam as pessoas no cotidiano, seus usos, beleza e valor. “Precisamos romper esse distanciamento e valorizar as espécies nativas. Reconhecer seus usos medicinais e simbólicos é fortalecer a identidade ecológica e cultural dos territórios urbanos”, reforça Melo.

A doutora em botânica acredita numa educação ambiental que vá além dos muros acadêmicos e dos manuais didáticos. Defende a criação de trilhas interpretativas, hortas comunitárias, parcerias entre escolas e comunidades religiosas, feiras de saberes e materiais educativos que dialoguem com a vivência local. “Esses saberes foram historicamente apropriados sem reconhecimento. Hoje temos o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SISGEN), que tenta proteger isso, mas ainda é pouco. É fundamental reconhecer que há conhecimento legítimo fora da academia, nas mãos de quem cuida da terra e das folhas há gerações”, ressalta Melo.
Ela também critica o uso indiscriminado de espécies exóticas em praças e parques urbanos. Para ela, as áreas verdes precisam representar o território, sua fauna, sua história e seus símbolos. “Muitas vezes são escolhidas sem critério ecológico. A prioridade deveria ser as espécies nativas, que abrigam e alimentam a fauna local e fortalecem os laços afetivos com o território”.
O verde que ensina a pertencer
Em meio ao avanço do cinza e ao ruído das cidades, as áreas verdes urbanas continuam sendo espaços de respiro e conexão com a natureza. Elas carregam histórias de pertencimento e espiritualidade. É nesse contexto que o Instituto Steve Biko realiza a Trilha Ancestral, atividade pedagógica e política no Parque São Bartolomeu, em Salvador.

A proposta do instituto, que oferece curso pré-vestibular para a população negra em situação de vulnerabilidade social, é simples: levar seus estudantes, jovens negros a ocupar, sentir e respeitar um território que é, ao mesmo tempo, sagrado e educativo. Ao caminhar pela mata atlântica que abriga nascentes, barragens e árvores centenárias, os estudantes vivenciam conteúdos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e também aprendem o que não está nos livros: o valor do corpo negro em comunhão com a natureza.
“Ocupar o parque com atividades voltadas à juventude negra é um gesto profundamente político, pedagógico e ancestral. É uma reconexão com a história, uma disputa de narrativas e um fortalecimento das identidades negras”, afirma Jucy Silva, coordenadora pedagógica do instituto.
Durante a trilha, dinâmicas com percussão, movimentos corporais e escuta ativa se misturam a momentos de contemplação, como a chegada à barragem, ou o recolhimento de resíduos ao final. São rituais de pertencimento que, segundo os organizadores, provocam reflexões profundas sobre racismo ambiental, memória e resistência. “Nosso povo tem uma relação ancestral com a terra, com as águas, com as matas. Preservar o meio ambiente é preservar nossas raízes, nossas histórias e nossos corpos”, ressalta Silva.
Natureza, fé e direito à cidade
Parques urbanos como o São Bartolomeu e o Metropolitano de Pituaçu revelam o que há de mais contraditório na cidade que foi eleita a segunda cidade do Brasil com mais áreas verdes, segundo estudo de 2023 do Map Biomas. Esses espaços com grande diversidade de espécies da fauna e flora, instrumentos voltados para a prática do sagrado, seguem cercados por abandono e invisibilidade.
Cristiane Conceição, arte educadora, moradora do bairro de Plataforma, no Subúrbio Ferroviário, relata que o parque São Bartolomeu representou a melhor parte de sua infância, na década de 70. “Era uma espécie de parque de diversão para as crianças daquela comunidade, onde as mães iam para lavar roupa numa parte que corria um rio, e a gente ia se divertir tomando banho nas cachoeiras de água límpida, era um lugar tranquilo sem perigo”, recorda. Hoje, boa parte das cachoeiras está poluída e imprópria para banho. Ainda, segundo Conceição, atualmente, por conta da insegurança, muitos jovens que moram ao redor nunca visitaram o parque. Mas há iniciativas que buscam atrair estudantes ao local, a exemplo do Festival Maré Baixa, por meio do qual Victória Soares pôde conhecer o São Bartolomeu.
“Num mundo tão acelerado, o parque vira um refúgio”, diz Victoria Soares, estudante de arquitetura na UFBA, enquanto participava de um evento no local.. O direito à cidade, à memória e ao bem-estar passa, necessariamente, pela presença de áreas verdes acessíveis, seguras e significativas.
Isso só é possível com gestão participativa, envolvimento comunitário e valorização dos saberes ancestrais por meio dos órgãos responsáveis. “É preciso fomentar editais que incentivem parcerias entre escolas, universidades e comunidades tradicionais. Isso amplia a noção de patrimônio e fortalece modos de vida que resistem para além dos espaços comuns”, reforça Edilaine Melo.

A Iyalorixá Mônica Santos, 43 anos, liderança do Templo de Culto à Ancestralidade Afro-brasileira Omiladê Obakossô, localizado no bairro da Caixa D’água, relata que as plantas estão na sua vida desde a infância. “Fui criada por uma mulher muito pobre e a gente não tinha acesso a medicações de farmácia. Minha mãe utilizava de todos os conhecimentos que teve durante a sua infância e pré-adolescência na zona rural. Ela conhecia muitas folhas e isso foi além de a gente se alimentar das plantas que estavam na frente da nossa casa”. Ela afirma que as plantas eram utilizadas para consumo como comida, chás e outros remédios.
O Templo Omiladê Obakossô criou em seu perfil no Instagram e no Tiktok a série educativa Folhaterapia, que trata de plantas conhecidas de muitas pessoas e seus usos, para chás e banhos de assento. Iyá Mônica explica que a série surgiu de um desejo antigo. “Sempre quis ter um projeto didático sobre plantas, sobre folhas e a minha comunidade abraçou”. Ela diz ainda que foi com a ajuda das pessoas da comunidade, a partir de seus conhecimento, que houve a produção da série, com contribuições na captação de imagens, edição de vídeos, áudio e no design.
“Nosso intuito é conseguir espalhar esse projeto para outras entidades e escolas públicas, para falar da folha como medicina tradicional e como alimento”, destaca Santos. A sacerdotisa pontua também que tem falado na série sobre o uso terapêutico das plantas como suporte no tratamento de questões de saúde mental, na busca pelo equilíbrio do ori (cabeça).
Há dois anos, a comunidade Omiladê Obakossô realiza o presente das águas para os orixás Oxum e Yemanjá, no rio dentro do Parque São Bartolomeu. A iyalorixá explica que o intuito da caminhada, além de cultuar as águas, é dar visibilidade para que outras comunidades tradicionais acessem esse espaço e que a população não perca o local para a poluição e abandono. Das três cachoeiras localizadas na parte do parque cujo acesso é por Plataforma, apenas uma está apropriada para uso. “A gente utiliza para fins ritualísticos, onde cultuamos a ancestralidade, mas também poderíamos ter um espaço de lazer”, aponta.

Outro ponto destacado por Iyá Mônica é a responsabilização do poder público sobre a poluição das águas nos parques metropolitanos. “Queremos despertar também na população geral, e, principalmente, entre as comunidades de culto tradicional, que necessitam da natureza para se manter vivas, o entendimento da importância de defender e proteger esses espaços, e mostrar o cenário atual, cobrando do poder público e mobilizando a sociedade para a sua preservação”, conclui.
Em cada folha existem inúmeras possibilidades de uso que são exploradas por mestres e mestras de comunidades tradicionais, iyalorixás, babalorixás e pesquisadores que enxergam além do palpável, valorizando e celebrando a existência de cada árvore e folha que resistem em uma metrópole que cada dia é mais sufocada pelo concreto. Nestes grandes centros onde tudo parece correr, parar para ouvir o vento entre as árvores pode ser um ato de resiliência e autocuidado. Preservar o verde urbano é manter viva a memória dos que vieram antes e abrir caminhos para quem ainda está por vir. Porque, como dizem os mais velhos: sem folha e verde nada se faz.
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Gerônimo Santos, estudante de Jornalismo na FACOM | UFBA, professor de teatro e mobilizador cultural.
Jamile Araújo, comunicadora popular, estudante de Jornalismo na FACOM | UFBA, atualmente é estagiária na Fiocruz Bahia.
A escolha da pauta se deu na busca de compreender como as áreas verdes urbanas impactam o bem-estar coletivo e, ao mesmo tempo, abrigam saberes ancestrais e espirituais. Todos os dias, ao irmos para a FACOM, passamos pelas áreas verdes da UFBA, isso motivou a falar sobre a importância delas.