Bahia enfrenta desafios para inclusão de estudantes com autismo

Com mais de 60 mil crianças e adolescentes com TEA, os colégios têm dificuldade para suporte de qualidade

 

Por: Addam Souza (@souzadam) e Lizy Maria (@lizytown_)

 

A legislação brasileira é clara: estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) têm o direito à inclusão plena na rede regular de ensino, com o devido suporte pedagógico e adaptações necessárias. Contudo, a realidade escolar na Bahia revela um grave descompasso entre o direito garantido e a permanência

 

Segundo dados mais recentes revelados pelo Censo Escolar 2024, ocorreu um aumento expressivo de 44,4% nas matrículas de estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Este crescimento vertiginoso, que fez o número de alunos saltar de aproximadamente 636 mil para quase 920 mil em apenas um ano, destaca o resultado direto de um maior acesso ao diagnóstico, conscientização social e o fortalecimento de políticas públicas em todo o país. 

 

A Bahia é parte fundamental dessa realidade. Com um dos maiores contingentes de alunos matriculados na educação especial no Nordeste, o estado reflete essa grande tendência nacional, adicionando milhares de novos estudantes com TEA às salas de aula a cada ano. 

 

Para o estado, o aumento de matrículas significa um desafio proporcionalmente maior na manutenção da qualidade e do suporte. O imperativo para a gestão local é claro: garantir a permanência e o desenvolvimento desses estudantes.

 

Dados recentes do Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelaram o tamanho desse desafio. O estado registrou 144.928 pessoas com diagnóstico de TEA, o que equivale a 1% da sua população total. Esse número coloca a Bahia na 4ª posição em termos absolutos no país. Desse total, mais de 60 mil dos diagnósticos pertencem a pessoas em idade escolar, com 49.920 com idade até 14 anos.

 

Apesar do aumento das matrículas de estudantes com TEA, a pesquisa do IBGE aponta que 93,1% das crianças e adolescentes com o diagnóstico estão matriculados na escola, abaixo dos 98,4% da população em geral. Esses números evidenciam os desafios enfrentados para a presença desses alunos em sala de aula.

 

Inclusão superficial e barreiras estruturais

 

Para a psicóloga Beatriz Guarany, pós-graduanda pela Santa Casa da Bahia em Terapia Comportamental Aplicada (ABA) para crianças e adolescentes com autismo, o maior obstáculo da educação inclusiva é a superficialidade com que ela é implementada. Segundo a especialista, houve avanços no discurso e na garantia da matrícula, mas isso não se refletiu, necessariamente, em inclusão real nas atividades pedagógicas. “Geralmente o maior desafio é a inclusão. Foram criadas muitas estratégias para que elas estejam na escola, mas isso não significa que estejam incluídas de fato”, declara.

 

Beatriz explica que estudantes com diferentes níveis de suporte dentro do espectro necessitam de estratégias distintas. Crianças com maior nível de suporte podem precisar de auxílio no cuidado diário, na organização da rotina e na mediação das interações sociais. Já aquelas com menor nível de suporte, muitas vezes invisibilizadas, também demandam apoio emocional, adaptações curriculares e compreensão por parte da escola. 

 

“O que acontece com frequência é que a escola exige que essas crianças e adolescentes ajam de forma típica, mesmo quando elas são atípicas. O ambiente é rígido, e a adaptação acaba sendo cobrada do aluno, e não do sistema”, ressalta. 

 

Segundo ela, o Atendente Terapêutico (AT) e o Auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) devem atuar como uma ponte entre o aluno e o ambiente escolar, oferecendo inicialmente um nível mais elevado de suporte para que o aluno aprenda a se relacionar com os colegas, compreenda as regras da escola e participe das atividades pedagógicas. 

 

 

A psicóloga destaca que práticas como rotinas estruturadas, quadros de recompensas e adaptações nas atividades não beneficiam apenas estudantes com TEA, mas toda a turma, criando um ambiente mais organizado e acolhedor.

 

O PEI na prática 

 

Previsto em lei, o Plano Educacional Individualizado (PEI) deveria ser o principal instrumento para garantir que o estudante com TEA tenha suas necessidades atendidas. No entanto, na prática, o documento muitas vezes é elaborado de forma genérica, incompleta ou com grande atraso. 

 

O PEI é um documento obrigatório que define adaptações curriculares e estratégias pedagógicas específicas para estudantes com deficiências. Foto: Google Imagens

 

 

A artesã Camila Moreira, mãe de Felipe Dias, aluno do 4º ano do Ensino Fundamental com TEA e superdotação, relata que a falta de conhecimento sobre o PEI é um problema recorrente nas escolas. “A maioria dos professores e coordenadores não entende de Plano Individualizado. Eles não recebem formação nem curso sobre o tema. Todo ano passo pelas mesmas dificuldades”, afirma.

 

Segundo ela, quando o PEI finalmente é entregue, geralmente já é metade do ano letivo e ainda assim apresenta lacunas importantes. “Meu filho fica entediado, porque o plano não abraça quem ele é nem o que ele precisa”, relata. Para Camila, o plano acaba se tornando apenas um documento burocrático, distante da realidade do aluno e incapaz de orientar práticas pedagógicas efetivas.

 

Outro desafio central da educação inclusiva é a atuação dos acompanhantes especializados, como Atendentes Terapêuticos (ATs) ou Auxiliares de Desenvolvimento Infantil (ADIs). Embora esses profissionais sejam fundamentais para promover autonomia e mediar a relação do aluno com a escola, a falta de formação adequada compromete o trabalho. “A acompanhante especializada não é especializada. E isso faz muita diferença na vida do meu filho”, conta Camila.

 

Segundo relatos de famílias e gestores escolares, os profissionais de apoio muitas vezes são encaminhados pelas secretarias sem preparo específico para lidar com o TEA. Cabe à própria escola buscar formação e orientação, o que nem sempre é possível diante da sobrecarga de trabalho e da falta de recursos.

 

Para muitas famílias, o maior indicador de exclusão não aparece nos relatórios oficiais, mas no comportamento da própria criança. Camila Moreira fala que percebe quando o filho não está sendo incluído de fato. “Eu sei quando ele não está incluído quando ele pede para não ir à escola. Todo lugar que inclui ele de verdade, ele volta feliz, vibra para ir de novo. Ele fala do lugar com entusiasmo”. Segundo ela, crianças com TEA sabem quando são aceitas, quando pertencem ao espaço e quando são apenas toleradas.

 

A visão da gestão escolar

 

Na Escola Municipal São Domingos Sávio, localizada na Ondina, a diretora Sandra Pereira reconhece que a inclusão ainda está longe do ideal. Ela explica que não há um orçamento específico destinado a estudantes com TEA, e que os recursos financeiros são distribuídos conforme projetos e demandas gerais da escola. “A gente tenta comprar materiais específicos e montar uma caixa de recursos de acordo com o diagnóstico de cada aluno”, explica. Para entender melhor os desafios enfrentados por essas escolas, confira a matéria realizada pelo Impressão Digital em 2024.2

 

Sobre os profissionais de apoio, Sandra é categórica ao afirmar que eles chegam sem preparo. “Nunca é um profissional preparado. Ele vem encaminhado pela prefeitura, e a própria escola precisa buscar a formação”, diz. No Fundamental II, a dificuldade se intensifica devido ao número de professores envolvidos no processo educativo. “São nove professores diferentes, e muitas vezes o professor não consegue acompanhar esse aluno”, relata.

 

Apesar dos desafios, a Escola São Domingos Sávio busca fortalecer a relação com as famílias e investir em formações internas. Foto: Sandra Pereira

 

Experiências pontuais mostram que a inclusão é possível quando há investimento em formação, gestão comprometida e diálogo constante com as famílias. Escolas que compreendem a inclusão como um princípio pedagógico, e não apenas uma obrigação legal, conseguem criar ambientes mais acolhedores e reduzir a evasão. Para 2026, a gestão planeja um projeto voltado especificamente para inclusão, envolvendo professores, centros especializados e familiares.

 

Atividades adaptadas ajudam a promover aprendizagem, autonomia e participação dos estudantes no cotidiano escolar. Foto: Sandra Pereira

 

Ações e ausência de metas específicas

 

Questionada sobre o enfrentamento dessa crise, a Secretaria da Educação do Estado (SEC), por meio do Coordenador da Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, Alexandre Fontoura (40), afirma que a SEC atua com programas integrados para fortalecer a permanência de todos os estudantes, como o Programa Busca Ativa Escolar, que identifica e acompanha estudantes em risco de abandono, o Bolsa Presença oferece apoio financeiro às famílias e a disponibilização de Profissionais de Apoio e Atendimento Educacional Especializado (AEE) nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), com estratégias pedagógicas que respeitam as características individuais do Transtorno do Espectro Autista.

 

Fontoura esclarece que não há metas específicas quantificadas por deficiência dentro do programa de enfrentamento à evasão. O objetivo da SEC é ampliar a permanência de forma universal. A investigação aponta que a escassez de profissionais especializados e a aplicação deficiente do Plano Educacional Individualizado (PEI) são barreiras críticas. O PEI é o instrumento pedagógico legal para garantir o desenvolvimento do aluno com barreiras.

 

Fontoura ressalta que a SEC não adota mecanismos de fiscalização do PEI nas escolas, mas sim um modelo de apoio contínuo. “Esse apoio ocorre principalmente por meio de formações para os(as) profissionais da educação, com foco na importância do PEI e na sua aplicação prática no cotidiano escolar”, explica. O foco é garantir que o documento seja compreendido e utilizado como uma ferramenta efetiva que promova “aprendizagens significativas e não apenas a presença física em sala.”

 

Em relação à atração e retenção de profissionais qualificados para as Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), o Coordenador afirma que os professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) recebem os mesmos incentivos de toda a categoria docente, integrando a base comum do magistério. O diferencial para atuar na função está na exigência de formação especializada em Educação Especial.

 

A proposta de criação de escolas especializadas para TEA, levantada em debates recentes, foi diretamente confrontada pelo coordenador da SEC. Alexandre Fontoura é enfático ao afirmar que a SEC não mantém escolas especializadas para pessoas com deficiência, alinhando-se à política nacional que estabelece que a escola do aluno com deficiência “é a escola comum, junto aos demais estudantes”.

 

O Decreto Estadual nº 12.686/2025 reforça essa política, proibindo a criação de escolas exclusivamente especializadas. “Todo investimento é direcionado para garantir qualidade, permanência, equidade, acessibilidade e direitos educacionais dentro da escola de base comum,” conclui Fontoura, descartando qualquer possibilidade de desvio de recursos.

 


Addam Souza e Lizy Maria são estudantes de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e assessores de comunicação. A escolha do tema é justificada por sua atualidade e impacto significativo que representa para a política e prática pedagógica.

 

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