Baixa arborização aprofunda diferenças e afeta qualidade de vida em Salvador

Especialistas defendem árvores adequadas ao bioma Mata Atlântica e explicam como a distribuição desigual de áreas verdes traz impactos para a temperatura e o bem-estar na capital

 

Ana Clara Batista (@anaclarasbatista)

 

Caminhar pelas ruas de muitos bairros da periferia de Salvador durante o dia significa enfrentar longos trechos sem sombra. O sol incide diretamente sobre o asfalto e as calçadas, tornando o deslocamento mais difícil e o calor mais intenso. A diferença fica evidente quando se atravessa a cidade em direção aos bairros centrais, onde a presença de árvores ajuda a amenizar a temperatura e altera a sensação térmica ao longo do dia.

 

Essa percepção cotidiana encontra respaldo nos dados oficiais. De acordo com o Censo Demográfico 2022 sobre Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Salvador é a segunda capital menos arborizada do Brasil. O levantamento aponta que 65,6% da população — cerca de 1,5 milhão de pessoas  vive em ruas sem nenhuma árvore, um aumento em relação a 2010, quando esse percentual era de 60,4%. Em pouco mais de uma década, cerca de 395 mil pessoas passaram a morar em áreas totalmente desprovidas de arborização, revelando um agravamento do problema.

 

A escassez de árvores não se distribui de forma homogênea pela cidade. Bairros centrais e de maior renda concentram mais áreas verdes, enquanto periferias e regiões densamente ocupadas convivem com ruas expostas ao sol, pouca sombra e temperaturas mais elevadas. 

 

Bairro de Massaranduba, Salvador/BA
Foto: Divulgação/FAU-USP

 

Essa desigualdade térmica foi mapeada pelo estudo Observatório do Calor, coordenado pelo professor Paulo Zangalli Júnior, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa identificou a formação de ilhas de calor em Salvador e mostrou que a diferença de temperatura entre bairros pode ultrapassar os 5 °C, especialmente no período da tarde. Regiões com maior cobertura vegetal e menor adensamento urbano, como Pituaçu, Pituba, Costa Azul, Graça e Vitória registram temperaturas mais amenas, enquanto áreas densamente ocupadas e com pouca ou nenhuma arborização,  como Ilha de Maré, Massaranduba e Periperi concentram os maiores índices de calor.

 

Quando plantar árvores exige planejamento

 

Especialistas ouvidas pela reportagem apontam que a baixa arborização de Salvador não é apenas resultado da ausência de árvores, mas também da forma como a cidade cresceu e foi planejada ao longo das últimas décadas.

 

A professora Maria Aparecida José de Oliveira, professora do Instituto de Biologia da UFBA, que é especialista em ecofisiologia de espécies nativas e ecologia urbana, lembra que Salvador já teve um cenário bem diferente. “Há cerca de 20 anos, a cidade figurava entre as mais arborizadas do país”, avalia. Hoje, no entanto, está distante da meta considerada adequada por especialistas, de cerca de 16 árvores por habitante.

 

Um dos principais fatores para essa mudança, segundo a professora, é a intensa exploração da Mata Atlântica, bioma predominante na cidade. O avanço imobiliário, a abertura de vias, a impermeabilização do solo e a substituição de áreas verdes por empreendimentos reduziram significativamente a vegetação nativa. “A cidade cresceu sem que a preservação da vegetação fosse tratada como parte estrutural do planejamento urbano”, explica.

 

Maria Aparecida destaca que arborizar não significa apenas plantar árvores, mas escolher espécies adequadas ao ambiente urbano e ao bioma local. Árvores nativas da Mata Atlântica, como o ipê e o pau-brasil, tendem a se adaptar melhor ao clima e ao solo, além de manterem relações naturais com polinizadores e outros organismos.

 

O uso de espécies exóticas, por outro lado, pode gerar problemas ambientais e urbanos. Um exemplo é a amendoeira, muito comum na orla de Salvador, que possui raízes agressivas e pode danificar calçadas e o asfalto. Outro caso é o nim, introduzido na cidade na década de 1970, que não é nativo e pode causar desequilíbrios ecológicos, além de favorecer a presença de morcegos em áreas urbanas. “É preciso pensar em espécies com raízes condizentes com o espaço urbano e, em áreas de grande circulação, preferencialmente não frutíferas, para evitar riscos à população”, aponta.

 

Esse ponto dialoga com a avaliação da professora María Gloria Fabregat Rodríguez, doutora em Ciências Geográficas pela Universidad de La Habana (Cuba), com experiência em Geografia da Saúde. Para ela, áreas com menor cobertura vegetal e maior compactação urbana são mais propensas à formação de ilhas de calor, fenômeno que tende a se intensificar com as mudanças climáticas. “Zonas com menos áreas verdes e maior compactação da estrutura urbana registram temperaturas mais elevadas”, afirma.

 

Injustiça ambiental

 

A forma como as árvores se distribuem pelo território de Salvador revela que o problema da arborização vai além da paisagem urbana. A escassez de áreas verdes acompanha desigualdades históricas da cidade e ajuda a aprofundar vulnerabilidades sociais, ambientais e de saúde. Enquanto bairros centrais concentram infraestrutura, sombra e temperaturas mais amenas, regiões periféricas acumulam calor, ocupações precárias e menor acesso a políticas públicas, configurando um cenário de desigualdade — ou injustiça — ambiental.

 

Para Maria Glória, essa desigualdade aprofunda vulnerabilidades urbanas e sociais. A baixa arborização favorece o aumento do estresse térmico, compromete o conforto ambiental e afeta diretamente a saúde da população. A exposição prolongada ao calor pode causar desidratação, tonturas, insônia, fadiga, dores de cabeça e agravar doenças cardiovasculares, respiratórias e mentais. Em casos mais graves, pode levar a emergências como síncope e golpe de calor, especialmente quando combinada com alta umidade, característica de cidades costeiras como Salvador.

 

Maria Aparecida ressalta que esse cenário está diretamente ligado ao que especialistas chamam de injustiça ambiental. Bairros periféricos concentram não apenas menos árvores, mas também ocupações em encostas, ausência de planejamento ambiental, saneamento precário e intervenções inadequadas na vegetação, que comprometem a saúde das árvores e aumentam riscos.

 

Segundo as pesquisadoras, as questões ambientais da cidade estão profundamente interligadas. Arborização, saneamento básico, preservação de matas ciliares, ocupação do solo e coleta seletiva fazem parte de um mesmo sistema. A falta de árvores intensifica o calor; o calor agrava problemas de saúde; a impermeabilização do solo aumenta riscos de alagamentos e deslizamentos; e a ausência de saneamento compromete cursos d’água e áreas verdes. “Quando o planejamento ambiental falha, os impactos se acumulam e recaem sempre sobre os mesmos territórios”, resume Maria Aparecida.

 

Para enfrentar esse cenário, as especialistas defendem a combinação de projetos estruturantes, com ações em escala local, desenvolvidas em bairros e comunidades, além da integração entre políticas urbanas, ambientais e educacionais. A participação da população e a exigência de projetos de arborização em novas urbanizações também são apontadas como caminhos essenciais para reduzir desigualdades e tornar a cidade mais resiliente ao calor.

 

A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Sustentabilidade, Resiliência, Bem‑Estar e Proteção Animal (SECIS) para saber quais ações vêm sendo adotadas para enfrentar o cenário de baixa arborização em Salvador e como têm funcionado os projetos de arborização urbana desenvolvidos na cidade. Até a publicação desta reportagem, não houve retorno.

 

 

Ana Clara Batista – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, atualmente é estagiária na TV Bahia, com atuação direcionada à redação do G1 Bahia, onde dedica-se à produção, apuração e atualização de matérias para o portal, além de produção e edição de conteúdo digital.

 

A motivação para esta reportagem surgiu da repercussão da informação divulgada pelo IBGE, de que Salvador ocupa a segunda posição entre as capitais menos arborizadas do Brasil. O maior objetivo ao longo da construção da pauta foi mostrar quais os impactos desse dado alarmante no meio ambiente e na vida das pessoas, e quais soluções podem ser aplicadas para contornar essa realidade ou, ao menos, amenizá-la. 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *