Mulheres têm usado sinais cifrados e ligações simuladas para denunciar violência de forma discreta
Gustavo Nascimento (@gustavnf_) e Theo Fernandes (@theofernandest)
Um sinal com a mão, um pedido de pizza ou de remédio: é possível fazer uma denúncia de violência contra a mulher de forma discreta e sem deixar pistas para o agressor, mas com indícios suficientes para a polícia ou para alguém que conheça os sinais cifrados.
Este gesto que serve como denúncia consiste em fechar o dedo polegar na palma da mão e, em seguida, cobri-lo com os outros quatro dedos da mesma mão. O sinal foi criado em 2020 pela Canadian Women’s Foundation (Fundação das Mulheres Canadenses em tradução livre) e ganhou repercussão nacional em abril de 2025, quando foi exibido em uma cena de Volta por Cima, novela da TV Globo.

Dois meses depois, o sinal voltou a ser exibido em um episódio de Dona de Mim, outra novela da emissora. Nas ocasiões, mulheres mostraram o sinal a pessoas do entorno (policiais ou transeuntes comuns), e assim puderam dizer que estavam em situação de perigo.

Crédito: TV Globo.
Também não é rara a repercussão de denúncias veladas por meio de ligações à polícia. Nesses casos, a vítima pode simular um pedido de pizza ou de medicamento. Só em agosto deste ano, pelo menos três casos diferentes deste tipo foram noticiados em portais nacionais e se tornaram meio de divulgação do método.
Em Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia, a vítima simulou um pedido de pizza, assim como em Xaxim, SC, poucos dias depois. Em Campo Grande, MS, uma mulher ligou para a polícia e pediu um dipirona e usou miligramas como paralelo à intensidade da agressividade. Nos três casos o policial entendeu a denúncia e estabeleceu comunicação por códigos, e os agressores foram presos.
Outros sinais
Em julho de 2021, foi sancionada lei que oficializou o “sinal vermelho” como forma de denunciar violência doméstica. A medida instituiu a letra “X” escrita na palma da mão, de preferência em cor vermelha, como sinal oficial para se denunciar formas de violência.
Em entrevista ao Impressão Digital, Simone Cerqueira Dias, tenente do Batalhão Especializado em Policiamento de Eventos (Bepe) da Polícia Militar da Bahia, destacou a importância dos sinais cifrados e também citou outras formas de denunciar violência.

Crédito: Eduardo Andrade.
– Mandar mensagem curta escrevendo “ajuda”, “urgente”, “preciso falar” – qualquer coisa que possa alertar sem gerar suspeita. Se tiver acesso limitado ao telefone: enviar mensagens de texto muito curtas para contatos de confiança (exemplo: “me ligue agora”, “preciso de ajuda”); usar aplicativos oficiais que permitem denúncia silenciosa (exemplo: Proteja Brasil). Se não tiver acesso ao telefone: procurar vizinho, porteiro, farmácia, comércio próximo ou escrever um bilhete simples (“chame ajuda”), se possível.
Simone Cerqueira Dias também apontou as medidas protetivas como solução eficaz, caso acompanhada de boa execução. Resumidamente, essas medidas podem restringir o porte de armas do agressor, proibir o contato com a vítima e sua família e a ida a lugares predeterminados. Além disso, pode prever acompanhamento policial para a vítima buscar abrigo ou outro domicílio.
– É possível garantir que as medidas protetivas funcionem através de monitoramento real do agressor (patrulhas, rondas, visitas regulares), acompanhamento pelo Ministério Público e Judiciário, rede de apoio ativa (Creas, Cras, casas-abrigo) e capacitação de policiais para atendimento imediato em caso de descumprimento – avaliou a tenente.
Panorama
Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), julho de 2025 foi o mês com mais medidas protetivas da série histórica (desde janeiro de 2020), com 81.042 registros. A última atualização, em setembro, consta com 76.665.

Crédito: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2025.
Ainda segundo o CNJ, em 2025, nove em cada dez pedidos de medidas protetivas são concedidos, e o tempo médio entre o início do processo e a concessão da primeira medida é de três dias.
A medida protetiva aparece como solução mais que pertinente no Brasil, já que, segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/MS), 71,6% das denúncias de violência contra a mulher são caracterizadas como violência doméstica, ou seja, acontecem dentro de casa. E o cenário também tem cor, uma vez que 60,4% dos casos contra mulheres adultas (de 20 a 59 anos) aconteceram contra vítimas negras, enquanto 37,5% contra brancas.
O CNJ também contabiliza a quantidade de ocorrências de violência doméstica, que se mostra crescente desde o início da série histórica. Assim como no recorte de medidas protetivas, o mês com mais casos foi julho deste ano, com 95.577 registros. 2024 é o ano com mais casos novos (1.012.857), e foram registrados 818.254 até setembro de 2025.

Crédito: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2025.
É preciso ir além
A atenção do ciclo social próximo e a conscientização são caminhos inerentes ao conhecimento dos códigos. Isso fica claro quando vítimas de violência escolhem não denunciar seus casos, e a justificativa não tem relação com a falta de conhecimento dos sinais, aplicativos ou números.
O Impressão Digital entrevistou Joana de Souza (nome fictício), mulher que sofreu dois casos de violência sexual, mas não denunciou por medo de retaliação ou de ser rotulada como mentirosa. O trecho seguinte descreve episódios de agressão e pode ser um gatilho psicológico.
– No primeiro deles, eu era mais nova. Tinha apenas 12 anos. Fui dormir na casa do meu tio, e o enteado dele, oito anos mais velho, tentou tirar a minha roupa em meio a uma “brincadeira” de pula-pula na cama. O outro foi quando eu tinha recém chegado à maioridade, e com o meu namorado. Eu não queria ter relações sexuais naquele dia, e ele tentou forçar. Prendeu meus braços, que ficaram com a marca das mãos dele, e com as pernas segurou as minhas pernas. Não tinha visto maldade na hora, achava que ele só estava com muita vontade. Um dia depois conversei com uma amiga, e ali entendi a situação que eu tinha passado.
Apesar de ter respondido que não denunciaria os casos nem mesmo se conhecesse os sinais cifrados, Joana de Souza reconheceu e defendeu a necessidade de divulgação dos códigos.
– Quanto mais divulgação tiver, mais conhecimento a mulher vai ter, e isso se transforma em mais chances para evitar ou se livrar de mais violência – opinou.
Como a psicologia lida com isso?
Os casos de Joana de Souza são uma ilustração do tipo mais comum de violência contra a mulher no Brasil: os episódios são de agressões físicas, mas o silenciamento se deu por uma violência psicológica. Segundo dados do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam 2025), divulgado pelo Ministério das Mulheres, o tipo mais comum de violência contra a mulher é justamente a psicológica, registrada em 32,6% dos casos. A física é a segunda mais frequente, com 29,7% dos registros.
Ao contrário do que um pensamento estereotipado pode indicar, a psicoterapia não é espaço para que se dite o que se deve ou não fazer. Isso também se aplica, é claro, às pacientes que sofrem violência doméstica. Em entrevista ao Impressão Digital, a psicóloga Ana Letícia Mansur, que atende apenas a mulheres, explicou que o acompanhamento deve fortalecer a autonomia e fazer com que a vítima não se sinta julgada por suas decisões, mesmo se escolher continuar em uma relação violenta.
– É importante que a mulher consiga nomear o que vive e entender, além de identificar, como acontece a dinâmica e o ciclo de violência da relação que está inserida. A psicoeducação permite que a mulher compreenda que, embora os efeitos da violência se manifestem de maneira muito íntima e individual, aquilo que ela vive não é um fenômeno isolado. Relações marcadas pela violência doméstica tendem a seguir padrões estruturais: possuem fases que se repetem, dinâmicas previsíveis e comportamentos característicos que aparecem em diferentes histórias. Ao entender esses padrões – como o ciclo da violência, o controle, o isolamento e a ambivalência – a mulher consegue nomear sua experiência, reconhecer que não é “culpa dela” e ampliar a clareza sobre o que está acontecendo.
A psicóloga também explicou as mudanças de comportamento de uma vítima de violência doméstica e como identificá-las. Para ela, os impactos podem ser profundos porque as agressões ocorrem no espaço que deveria ser de proteção e intimidade, ou seja, onde se espera mais segurança.
– Na parte emocional é comum aparecer ansiedade, medo constante, sensação de desamparo, culpa, vergonha, tristeza, confusão e insegurança sobre a própria percepção. Além de um prejuízo em relação à autoestima. A experiência repetida do ciclo da violência (tensão, agressão e “lua de mel”) pode gerar o que chamamos de ambivalência afetiva. Isto é, a mulher pode vir a sentir emoções contraditórias ao mesmo tempo em relação ao parceiro e à relação. Por exemplo, ela ama e tem medo, quer ir embora mas quer ficar também.
– Na parte social, a mulher tende a se isolar. Relações com amigos e familiares se enfraquecem, muitas vezes por controle direto do agressor, por vergonha ou receio do julgamento de terceiros quando não consegue romper com a relação. O trabalho pode ser prejudicado, assim como a independência financeira. Esse isolamento aumenta a vulnerabilidade e dificulta ver alternativas fora da relação – completa Ana Letícia Mansur.

Por fim, Ana Letícia Mansur explicou também sobre o direito e o dever dos psicólogos de denunciar casos de violência e quebrar o sigilo dos atendimentos. Em casos de mulheres adultas, o profissional não deve denunciar sem o consentimento da vítima, à exceção de risco iminente à vida da paciente. Neste cenário, é dever do profissional também explicar à paciente sobre o motivo da quebra do sigilo. A denúncia se torna obrigatória em casos de crianças, adolescentes, pessoas idosas ou com deficiência.
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Gustavo Nascimento é estudante de Jornalismo na UFBA desde 2023, mesmo ano em que se tornou membro da Liga de Jornalismo Esportivo da UFBA (LJEU), onde permaneceu até o final de 2024. Profissionalmente, atuou na Comunicação do Esporte Clube Ypiranga e do Esporte Clube Vitória entre 2024 e 2025, e hoje integra a redação do portal Varela Net. É um dos apresentadores do podcast esportivo Debate-se, produto da Rádio FACOM, desde 2024, além de administrar o perfil debateydebate nas redes sociais desde 2021.
Theo Fernandes estuda Jornalismo desde 2023 na UFBA, onde também participou por mais de dois anos da Liga de Jornalismo Esportivo (LJEU). Desde fevereiro de 2025, é estagiário na Rede Bahia e atua como repórter do portal esportivo ge.globo. Entre 2024 e 2025, foi estagiário e atuou como repórter no caderno impresso de esportes do Jornal MASSA! por sete meses. Apresenta o podcast esportivo Debate-se, produto da Rádio FACOM, desde 2024.
A elaboração desta reportagem foi motivada pela repercussão de casos de mulheres que denunciam episódios de violência por meio de ligações que simulam situações fictícias. A partir disso, a descoberta dos sinais cifrados motivou a percepção de que eles precisam ser divulgados. Além disso, a visão da psicologia serviu como forma de perceber os sinais implícitos.
