O bairro Beiru tem nome de um líder negro e pertenceu ao antigo Quilombo do Cabula. Atualmente, é uma das maiores favelas da Bahia, de acordo com o IBGE
Luiza Raposo (@lzu.raposo) e Maria Eduarda Pinto (@madupintoo)
As comunidades urbanas do Beiru/Tancredo Neves e Pernambués são as duas maiores favelas da Bahia e estão entre as mais populosas do país. É o que apontam os dados do Mapa das Favelas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, divulgados no último dia 08 de novembro. Segundo o mapeamento, o Beiru possui 38.871 mil habitantes, porém, mais do que um dado estatístico, o destaque para Beiru reacende debates sobre identidade e memória, especialmente em torno do nome do território.
Entre idas e vindas, nomeações e consensos, o bairro aos poucos retoma suas raízes identitárias e culturais, mediante o esforço de moradores e associações comunitárias e culturais no local. O nome “híbrido” Beiru/Tancredo Neves mascara, desde sua oficialização em 2017, a resistência ao apagamento histórico vivido na região que pertenceu ao antigo Quilombo do Cabula.
O nome Beiru faz referência a um negro escravizado, imortalizado graças à tradição oral e ao imaginário coletivo. Em 1985, durante o período da redemocratização, o bairro passou a ser chamado de Tancredo Neves, em homenagem ao político brasileiro que venceu a primeira eleição após 21 anos de regime militar, mas faleceu antes de tomar posse como presidente. Essa mudança foi promovida pelo então líder comunitário da região, Dionísio Juvenal (in memoriam), que organizou um plebiscito sugerindo a mudança do nome.
O atual presidente da Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro (ACCMN), Roberto Freitas, narra o processo de resgate sócio-cultural da nomenclatura do bairro, que perdura até hoje. “Isso foi uma manobra de um político pra poder ganhar a eleição, certo? ‘Vamos tirar Beiru porque tem rima, vamos botar Tancredo Neves’, mas você vai ver que está todo mundo equivocado, porque Curuzu tem rima, mas só o Beiru o pessoal queria tirar porque simplesmente era um escravo, um líder. O único bairro de Salvador que tem o nome de um líder negro”, conta.
Historicamente, o bairro do Beiru é parte do foi o Quilombo do Cabula, que foi destruído pela polícia colonial em 1807, forma parte do atual aglomerado de bairros na região geograficamente conhecida como “miolo” de Salvador. Segundo estudos produzidos pelo grupo de pesquisa Observatório dos Bairros de Salvador, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a história desses bairros como Cabula, Beiru, Arenoso, Engomadeira e Mata Escura remontam ao período colonial na primeira capital do Brasil.
“O bairro do Beiru/Tancredo Neves, assim como Engomadeira e Arenoso são fruto de um desmembramento da área que era conhecida no período colonial como Quilombo do Cabula, o qual foi destruído pela polícia colonial em 1807.” (Lopes, Borges, Araújo, 2022)
A ação se deu, pois a região, que possuía uma mata fechada e pouco explorada, se tornou um refúgio para os escravizados que conseguiam fugir dos bairros centrais e mais populosos da capital baiana, como Pelourinho e Santo Antônio Além do Carmo, ou das regiões litorâneas. Rapidamente, o local se tornou um dos quilombos mais proeminentes da capital na época, conhecido pelas práticas religiosas de matriz africana. A transgressão aos costumes católicos levou João Saldanha da Gama, Conde de Ponte, governador e capitão da capitania da Bahia, a organizar uma operação que destruiria o quilombo.
Negro herói
Daquela organização surgiu a figura de GBeiru, um personagem histórico da capital que nomeou o bairro por anos e que hoje retorna ao imaginário social. Quem narra essa história é o escritor, poeta e doutor em cultura pela PUC-Rio, Davi Nunes, um dos expoentes do bairro.
Em seu livro sobre a história de Gbeiru, intitulado “Beiru: A História de um Africano Iorubá”, o autor conta que Beiru ou “Preto Beiru”, era um homem negro escravizado de origem iorubá, nascido em Oió, na Nigéria (África), sem ano detalhado. Em 1820, já no Brasil, ele teria sido comprado pela família Hélio Silva Garcia, para trabalhar na Fazenda Campo Sêco, localizada na região do antigo Quilombo do Cabula.
Em decorrência de seu trabalho considerado exemplar, Beiru ganhou a confiança dos escravizadores e, em 1845, recebeu terras em seu nome, onde formou o Quilombo do Beiru. Também se transformou numa liderança negra de representatividade, por isso tanto os escravizados livres, fugidos ou alforriados foram morar no quilombo com ele.
A história de GBeiru também é contada no livro da Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro : “Beiru“, publicado em 2007. Disponível na biblioteca virtual da Fundação Mário Leal Ferreira, a obra traz a história do bairro, documentos e um abaixo-assinado de moradores reivindicando a volta do nome original.

Cadê o Beiru?
Em um dia ordinário de trabalho na capital baiana em 1985, moradores do Beiru saíram para trabalhar utilizando o transporte público municipal que exibia o nome do bairro em todas as suas placas. Na volta, o mesmo grupo de trabalhadores ficou por horas aguardando o ônibus que os levaria de volta para o Beiru, mas só se via nas ruas o nome de uma nova localidade: Tancredo Neves. “Eles ficaram esperando, mas o Beiru nunca veio”, conta Nunes.
A história, que soa como um conto tradicional do bairro, também foi repetida organicamente por Roberto Freitas e Vagner Peruno, ambos representantes da Associação Comunitária do Beiru. A decisão que, durante entrevista para o Impressão Digital, ambos chamaram de “arbitrária” nunca teria feito sentido para a comunidade. E, com o passar do tempo, a revisão foi feita pelos mesmos termos em que começaram: as placas do transporte público.

A partir de 2005, a Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro Beiru entrou com uma ação junto a Prefeitura para que os ônibus da região passassem a exibir o nome “Beiru” em seu letreiro.
“Através dessa dessa ação, o Associação Mundo Negro entrou com uma ação judicial e conseguiu ganhar, através de muita luta e batalha, que o nome fosse retornado. Só que depois de 20 anos esse nome retorna, o nome Beiru passava a ter o mesmo problema do Tancredo Neves, porque em 20 anos muitos nasceram, outras pessoas vieram. Para que não houvesse a mesma confusão, a gente orientou que fosse colocado o nome do Beiru/Tancredo Neves na frente dos ônibus. E assim foi feito e é o que tá oficializado até hoje”, detalha Vagner Peruno, que atua como diretor financeiro da Associação.
Tendo vivido no Beiru desde que nasceu, Davi Nunes também comenta as transformações no uso do nome pela população e critica as contradições entre o nome oficial e a identidade do território:
“Hoje, as pessoas no bairro, em si, muitos falam Beiru, outros falam Tancredo Neves, falam Neves ou Trancredo Neves. Mudam a fonética da nomeação. Mas esse processo de mudança de identidade, com um nome que não tem nada a ver, que é de um cara de Minas Gerais, nomeando todo um bairro negro e periférico na cidade de Salvador é um absurdo tanto histórico, epistemológico, quanto identitário”, critica.
A mudança do nome do bairro mobilizou diversas entidades a trazer de volta as memórias históricas do bairro. Uma iniciativa importante é o documentário “Meu nome é Beirú“, dirigido por Emerson Carvalho Bulcão, nascido e criado no bairro.
Lançado em 2022, o curta narra a história do território e mostra como dizer seu nome original é uma forma de resistência e luta contra o apagamento histórico. “Foi uma ideia conjunta, minha e do professor doutor em sociologia Fábio Nogueira (UNEB). Ele representou o Círculo Palmarino, uma entidade nacional do Movimento Negro.”
Graças à luta e à mobilização popular, em 2017 o bairro voltou a ser oficialmente reconhecido também pelo seu nome original, adotando a nomenclatura Beiru/Tancredo Neves. Em 2023, o vereador Tiago Ferreira, do Partido dos Trabalhadores (PT), apresentou um projeto de lei para que o nome voltasse a ser apenas Beiru. O projeto segue em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal de Salvador.
Enquanto essa luta das associações locais não chega ao fim, essas mesmas entidades seguem utilizando a arte e a produção de cultura para manter a memória histórica e ainda recriar o imaginário social sobre o Beiru por meio de seus trabalhos. Abaixo, a reportagem do Impressão Digital produziu uma lista sobre algumas das principais organizações culturais do bairro, baseada nas entrevistas realizadas com produtores culturais locais que nos levaram a conhecer mais profundamente a cultura do Beiru.
Beiru/Tancredo Neves é a maior favela da Bahia, revela dados do IBGE
Censo divulgado no dia 8 de novembro revela dados sobre o perfil básico da comunidade

Segundo o Censo de 2022, o bairro do Beiru atualmente conta com mais de 36 mil habitantes, e é a maior favela da Bahia e a décima do Brasil. Além do número de moradores, que na época foram contabilizados em 38.871 pessoas, o IBGE formulou um perfil básico da comunidade do Beiru, que é um dos 117 bairros oficiais da capital baiana.
Segundo a definição do IBGE, favelas são são localidades urbanas com ausência ou oferta incompleta de serviços públicos; que possuam arruamento e infraestrutura que usualmente são autoproduzidos ou se orientam por parâmetros urbanísticos e construtivos distintos dos definidos pelos órgãos públicos; e estejam localizados em áreas com restrição à ocupação definidas pela legislação ambiental ou urbanística.
Atualmente no Beiru/Tancredo Neves, existem mais de 20.217 domicílios habitados, com uma porcentagem de mais de 95% em todos os índices de inclusão como conexão à rede de esgoto; abastecimento de água pela rede geral; banheiro exclusivo e coleta de lixo.
Com relação ao perfil dos moradores, mais de 41% dos soteropolitanos que habitam o Beiru/Tancredo Neves são pretos e outros 49,74% se autodeclararam pardos. Apenas 8,13% dos cidadãos do bairro são brancos. Assim como no cenário municipal e estadual, as mulheres são maioria na comunidade, sendo 100 mulheres para 85 homens, com uma idade média de 36 anos. O envelhecimento da população brasileira também chega até as favelas baianas: no Beiru/Tancredo Neves vivem 82 pessoas idosas, com mais de 60 anos, para cada 100 pessoas de até 14 anos.
Um dado importante registrado pelo IBGE é o de estabelecimentos por espécie. O Beiru/Tancredo Neves possui 3.594 estabelecimentos, sendo eles, 50 unidades de ensino, 13 estabelecimentos de saúde, 92 instituições religiosas e 1 agropecuária. Outros 2.251 estabelecimentos foram descritos como “outras finalidades” e 1.187 estavam em reforma ou construção durante o mapeamento.
Os estabelecimentos culturais do bairro foram parte dos descritos como “outras finalidades”, no entanto, a finalidade destes é uma das principais na região: que é a manutenção da memória histórica e cultural do Beiru, especialmente em torno do nome do território.
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Maria Eduarda Pinto é técnica em Comunicação Visual e graduanda em Jornalismo na FACOM | UFBA. Interessada em política, cultura e sociedade, Eduarda atua como escritora, comunicadora e pesquisadora iniciante.
Luiza Raposo é comunicadora e graduanda em Jornalismo FACOM | UFBA, com interesses em artes visuais, cultura, tecnologia e sociedade. Atualmente trabalha nas áreas de assessoria de comunicação, produção cultural e social media.
A escolha do tema se deu a partir da divulgação dos Mapa das Favelas do IBGE e o interesse das autoras em escrever sobre cultura e sociedade.