Mais longevo sambista da Bahia também terá memória preservada em site
Altamirando Júnior (@altamirandojr) e Verena Veloso (@verena.veloso)
Uma cultura secular. É impossível falar da história do Brasil sem citar o samba. Com mais de seis décadas de reconhecimento oficial, celebradas nacionalmente em 2 de dezembro, o gênero é símbolo de luta, paixão e resistência. Entre os grandes representantes está Clementino Rodrigues, o eterno Riachão. Autor de sucessos como “Cada Macaco no Seu Galho” e “Vá Morar com o Diabo”, ele nasceu em Salvador, em 14 de novembro de 1921, e faleceu em 30 de março de 2020, por causas naturais.
Riachão manteve-se ativo e criativo até o fim da vida. Aos 98 anos, trabalhava em um disco de canções inéditas, intitulado “Se Deus quiser, eu vou chegar aos 100”. Após a morte dele, o projeto foi adaptado e passou a se chamar “Onde eu cheguei, está chegado”.
Contracapa do disco póstumo. Crédito: Divulgação
O lançamento do álbum estava previsto para acontecer no Dia Nacional do Samba. No entanto, foi adiado para 12 de dezembro, por questões burocráticas. O disco reúne dez faixas interpretadas por Riachão, com participações de artistas como Juliana Ribeiro, Roberto Mendes e Enio Bernardes. Outros detalhes estão disponíveis no perfil oficial dedicado à obra de Clementino. O projeto também contará com um site para preservar momentos marcantes da trajetória do mais longevo sambista da Bahia.
Este último álbum reafirma a capacidade de Riachão de renovar o samba, mesmo após a partida do ilustre cantor. A presença dele permanece em cada esquina da cidade, nas rodas de samba, nas memórias do passado e no sorriso de quem reconhece a genialidade de Clementino ao transformar o cotidiano em arte atemporal. “A obra dele expressa um estilo de vida que é o samba. Para Riachão, ser sambista não era apenas fazer samba; era viver o samba o tempo todo, 24 horas por dia”, define André Oliveira, DJ e pesquisador da música baiana.
A sagacidade do artista é exaltada como uma mistura de dendê e muito axé. “Ele é cria da juventude do Garcia, da última geração de malandros soteropolitanos. Não são os mesmos malandros do Rio, mas uma malandragem única da Bahia”, destaca André. A decisão de permanecer em Salvador, próximo da família e das inspirações locais, trouxe custos. “Isso impediu que Riachão alcançasse o mesmo reconhecimento de sambistas do Rio, mas ele garantiu seu lugar como o sambista malandro baiano”, completa o DJ.
O professor de artes Engelis Oliveira, conhecido como Feijão, também reverencia Riachão. Na série de pinturas Gratas Personas, Clementino ocupa lugar de destaque. Nascido em Salvador e filho de uma mulher do Recôncavo Baiano, Feijão reconhece a importância do samba na vida dele. “Dá significado à arte que produzo hoje e fortalece a conexão com a minha ancestralidade. Vai além do aspecto religioso, porque também dá sentido à minha existência e à trajetória artística que venho traçando”, ressalta.
Pituras de Riachão feitas pelo professor Feijão. Foto: Arquivo Pessoal/Engelis Oliveira
Em um encontro especial, Engelis presenteou Riachão com uma tela que retrata o icônico cantor. O gesto simboliza a profunda influência de Clementino no processo criativo de Feijão. “De um lado, ele, nosso cronista prosaico. Do outro, Batatinha, com uma visão mais existencialista. Tudo isso sempre me inspirou na forma como percebo a baianidade”, reflete o professor de artes.
Engelis Oliveira presenteia Riachão com uma pintura da série “Gratas Personas”. Foto: Arquivo Pessoal
Baiano ou carioca?
Um debate frequente entre admiradores do samba gira em torno de sua real origem. Embora muitos atribuam o nascimento do gênero ao Rio de Janeiro, o pesquisador musical Paquito, nome artístico de Antônio José Moura, argumenta que o samba nasceu e foi criado na Bahia, apesar da forte ligação com a cultura carioca.
Segundo Paquito, o gênero se consolidou como símbolo da identidade brasileira na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, quando o rádio passou a ocupar um papel central no cotidiano das famílias. “O samba nasceu originalmente com as Tias Baianas, que o levaram para o Rio. Lá, ele se transformou em algo mais carnavalesco”, explica, referindo-se às mulheres reconhecidas como as mães do gênero.
Discos de históricos sambistas baianos. Foto: Arquivo Pessoal/André Oliveira
O DJ André Oliveira concorda que as raízes do samba estão na terra de figuras como as tias Ciata, Bebiana e Carmem do Xibuca. “Está na clave, na chula, nos terreiros de candomblé. O samba vai para o Rio de Janeiro e ganha outra conotação. Mas quem levou o sapato para lá? Foi uma mulher baiana, do Recôncavo”, pontua.
Ao chegar ao Rio, o samba passou por transformações que ampliaram a riqueza do gênero. “A cultura não é estática, ela circula. Esse trânsito entre as duas regiões foi enriquecedor. O rádio e as pessoas que iam e voltavam deram a essa música um caráter de comunhão”, destaca o pesquisador.
“Vivíamos o samba dia e noite”
“Nós vivíamos o samba dia e noite.” É dessa forma que Jonylson Rodrigues, 62 anos, filho de Riachão, descreve a relação com o ritmo. A conexão nasceu nas rodas organizadas pelo pai, onde a música era protagonista. “Era arte na veia, desde os sambões no São João até os carnavais”, recorda. Para Jonylson, o samba representa muito mais que melodia; é uma celebração da cultura brasileira. “É a alegria e o bem-estar de um povo, o que há de mais importante para a nossa nação”. O impacto foi transformador, especialmente dentro da família. “O samba moldou minha vida e a dos meus irmãos. Era a nossa realidade 24 horas por dia. Para mim, é vida, felicidade e amor. Quem gosta dessa música é um bom sujeito”, brinca.
Jonylson posa para a foto ao lado de Riachão, no aniversário de 98 anos do pai. Foto: Arquivo Pessoal/Jonylson Rodrigues
Jone Rodrigues, 63 anos, outro herdeiro de Riachão, enfatiza a força do samba como elo de união e transformação. “É uma eterna poesia que une povos e transforma o ambiente”, afirma. Para ele, o samba vai além do entretenimento; é um instrumento de formação cultural. “Desde o início, o ritmo esteve ligado à educação e aos princípios transmitidos pelos mestres”, evidencia.
Jone também foi celebrar a vida do pai, no último aniversário dele. Foto: Arquivo pessoal/Jone Rodrigues
Convicto da relevância do samba, Jone enaltece o papel do gênero na preservação da história e das tradições. “É algo que impacta no desenvolvimento cultural de um povo, preservando raízes e conquistando seguidores.” Para ele, a música é visceral e inegociável. “Está no sangue. Quando ouvimos tocar, chega a arrepiar. É a conexão entre ritmo, tradição e felicidade.”
O legado do samba, transmitido por gerações e perpetuado por famílias como a de Riachão e seus herdeiros, segue vivo como uma das expressões culturais mais autênticas do Brasil. O gênero também marcou a trajetória do jornalista Filipe Soares, 30 anos, que já integrou bandas independentes na Bahia. Influenciado pelos tios desde a infância, ele cresceu ouvindo canções imortalizadas nas vozes de Arlindo Cruz e Jorge Aragão, que até hoje fazem parte de sua playlist.
Já o professor de música Kleber Dultra, 60 anos, guarda com carinho a lembrança de quando o sambista Ederaldo Gentil tocou o primeiro violão do então adolescente durante uma roda de amigos.
Independentemente da discussão sobre a origem do estilo musical, o pesquisador Paquito não hesita: “O samba é o gênero máximo da brasilidade.” Já o DJ André Oliveira complementa e exalta a essência que sustenta o samba ao longo do tempo. “O DNA do gênero está no corpo das pessoas sambando, nos arranjos do cavaquinho, na essência que atravessou gerações. Mesmo com as transformações culturais, o molejo e a célula do samba continuam vivos”, conclui.
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Altamirando Júnior
Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, iniciou sua trajetória atuando como assessor de imprensa. Foi setorista de esportes no Jornal A Tarde e pesquisou sobre jornalismo cultural durante intercâmbio na Universidad del País Vasco, na Espanha. Atualmente, é monitor do Laboratório de Audiovisual da Faculdade de Comunicação da UFBA.
Verena Veloso
Bacharel em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia, atua no radiojornalismo há mais de dois anos. Pela Faculdade de Comunicação da UFBA, já fez iniciação científica e atualmente está dedicada à elaboração de um podcast na área da saúde, produto que será apresentado como TCC para a obtenção do diploma em jornalismo.