O futuro da velocidade é elétrico

Conheça a equipe soteropolitana que está construindo um carro de Fórmula-E 100% verde e sustentável

 

Marina Branco (@marinavbranco) e Sofia Nachef (@sofianachef)

 

 

Na época de Ayrton Senna, o Brasil inteiro tinha uma paixão em comum – a Fórmula 1. Com a morte do maior ídolo nacional, os brasileiros acabaram se distanciando um pouco do esporte, mas a Fórmula Elétrica nunca se distanciou dos brasileiros, e seguiu presente desde participações de pilotos do Brasil nas maiores categorias de fórmula até talentos escondidos em cidades como Salvador. 

 

Prova disso é o nascimento da primeira equipe de Fórmula SAE Elétrica de Salvador, a Xangô E-Racing, em meados de 2023. O projeto une tecnologia, sustentabilidade e identidade baiana, para trazer de volta o fascínio pelas pistas, mas sem poluir o ar. 

 

Ilustração de ecologia da Xangô E-Racing I Foto: Imagem gerada por ChatGPT versão 5.1 para Windows

 

A ideia surgiu de ex-membros da equipe de Fórmula a combustão. “Movidos pelo espírito da inovação, vimos a oportunidade de trazer, de maneira pioneira, a categoria elétrica para Salvador e para a UFBA, tratando de tecnologias verdes desde a cultura de base do engenheiro moderno”, conta o ex-capitão Matheus Caldas.

 

Como explica Pedro Roffer, líder administrativo da equipe, “a sustentabilidade está presente em todo o projeto, desde o uso de energia elétrica no carro até a avaliação de implementações sustentáveis dentro da equipe. É cultural na Xangô o apreço pelo desenvolvimento sustentável”.

 

O que começou com sete integrantes se tornou um time robusto com mais de 40 estudantes divididos em áreas técnicas e administrativas. O salto aconteceu após a aprovação do projeto pela Congregação da Escola Politécnica, quando a Xangô passou a contar com apoio institucional da universidade e da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão (FAPEX).

 

Equipe da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Equipe da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Hoje, a equipe tem oficina própria dentro da Poli, onde constrói o protótipo do carro, embora parte dos serviços, como usinagem e manufatura, precise ser feita fora da universidade.

 

A estrutura é quase empresarial – há setores de chassi (Body & Frame), dinâmica e powertrain/eletrônica, além de núcleos administrativos. Financiamento, no entanto, segue sendo um desafio constante. 

 

“A equipe é financiada pelo esforço dos membros, que trabalham em atividades como venda de rifas para gerar caixa. Ao mesmo tempo, buscamos patrocínios e subsídios”, explica Matheus.

 

A perspectiva, porém, é de melhora. Em outubro, a Xangô recebeu visita de representantes da BYD, gigante chinesa de veículos elétricos com fábrica na Bahia, que conheceram de perto o projeto e reforçaram o vínculo da equipe com o ecossistema da mobilidade sustentável. 

 

É assim que vem se dando o crescimento da Fórmula SAE Elétrica, a categoria estudantil internacional da Sociedade de Engenheiros Automotivos, em que equipes universitárias projetam e constroem carros elétricos tipo “fórmula”, no formato kart e feitos para corridas. O foco é aplicar conhecimentos acadêmicos em um projeto real, com ênfase em inovação, sustentabilidade e eficiência energética.

 

Visita da BYD à Xangô E-Racing - Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Visita da BYD à Xangô E-Racing – Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

O fim da fumaça

 

Enquanto o automobilismo mundial ainda tenta equilibrar performance e emissões, os engenheiros da Xangô partem de um princípio simples: a velocidade do futuro é elétrica.

 

“A principal diferença é que usamos propulsão elétrica, reduzindo emissões de gases poluentes e o consumo de combustíveis fósseis”, explica Pedro.

 

O motor elétrico é o coração da proposta. Diferente do motor a combustão, que queima gasolina e libera gases como CO₂ e óxidos de nitrogênio, o sistema da Xangô funciona com energia armazenada em baterias, sem queima e sem emissão direta. 

 

O impacto ambiental, explica Leonardo Gonzaga, coordenador de Powertrain e Eletrônica, depende apenas da origem da eletricidade usada no carregamento. “Se a fonte for solar ou eólica, o ciclo completo se torna 100% livre de emissões. É o cenário ideal e totalmente viável”, afirma.

 

Reunião da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Reunião da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Um motor a combustão converte menos de 30% da energia do combustível em movimento – o resto é calor desperdiçado. Já o motor elétrico da Xangô ultrapassa 85% de eficiência, com menos peças móveis e menos atrito.  “É como comparar uma vela com um LED: o elétrico é direto, simples e eficiente”, diz Leonardo.

 

Essa eficiência se estende a todo o sistema. Quando o carro freia, parte da energia que seria perdida em calor é devolvida para a bateria por meio da frenagem regenerativa, “como se o carro respirasse de novo a energia que acabou de gastar”.

 

É assim que a Fórmula SAE Elétrica tem na sustentabilidade o seu coração. A categoria valoriza eficiência, reaproveitamento e inovação tecnológica, de um jeito que “não basta ser rápido, tem que ser eficiente, tornando o projeto um laboratório de soluções sustentáveis”.

 

Futuro com data, endereço e som

 

Depois de dois anos de desenvolvimento digital, o grande momento está chegando – o primeiro carro físico da Xangô conhecerá as pistas. O modelo será apresentado em agosto de 2026, na competição da Fórmula SAE Elétrica em Piracicaba, São Paulo, e já está se preparando para competir. 

 

No torneio, as equipes passam por provas estáticas, como análise de custos e apresentação técnica, e provas dinâmicas, que avaliam aceleração, manobrabilidade e eficiência energética.

 

Antes disso, há um dia inteiro de inspeções de segurança realizadas pela Sociedade de Engenheiros Automotivos, a SAE. Só após aprovação é que o carro pode entrar na pista – e todo esse cuidado tem motivo.

 

O circuito de Piracicaba é desafiador. Nele, os carros encaram uma curva de quase 90 graus, o que obriga as equipes a planejar suspensão, torque e distribuição de peso com precisão milimétrica.

 

Simulador do autódromo de Piracicaba | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Simulador do autódromo de Piracicaba | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Os pilotos são os próprios membros da equipe, que conhecem o carro a fundo e passam feedback direto para os ajustes mas, mais que isso, se dedicam de corpo e alma ao projeto. É como diz Matheus: “É uma honra dirigir o carro que você mesmo construiu”.

 

Nesse processo, o automobilismo, historicamente associado ao consumo de combustível, se reinventa como campo de testes de inovação sustentável. “O motor a combustão chegou ao limite da eficiência. O automobilismo mostra que o futuro é elétrico, inteligente e conectado”, afirma Leonardo.

 

Pedro complementa: “O mundo está mudando. As novas gerações e as empresas buscam desempenho com responsabilidade ambiental, e o automobilismo está seguindo essa tendência”.

 

O carro que nasce do código

 

Para fazer o carro se tornar realidade sem trazer gastos de material ou possíveis danos ao meio ambiente, um caminho simples surgiu – a tecnologia. Antes de qualquer peça ser fabricada, o carro existe no mundo digital.

 

O processo começa com a modelagem em Python, onde os membros estruturam os primeiros conceitos e simulações. Depois, tudo é transformado em modelos tridimensionais no SolidWorks (CAD).

 

“Essas ferramentas são fundamentais para a sustentabilidade. Projetamos e testamos peças virtualmente, analisamos tensões, fluxo de ar e desempenho sem gastar um grama de alumínio ou carbono. É engenharia preventiva”, explica Leonardo.

 

Somente após essa etapa, as peças são compradas e o modelo físico é montado. “Estamos no estágio de começar o CAD do carro após dois anos de desenvolvimento dos modelos em código”, diz Matheus.

 

Por enquanto, a equipe trabalha apenas com simulações computadorizadas, mas o protótipo físico já está em produção, seguindo um cronograma de manufatura que deve durar de sete a oito meses para o chassi e até três anos para o powertrain completo.

 

Protótipo em Python da Xangô E-Racing - Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Protótipo em Python da Xangô E-Racing – Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Dinâmica: o equilíbrio entre velocidade e segurança

 

A área de Dinâmica, liderada por Ruan Felipe Lutigards, é a responsável por transformar o projeto em algo que realmente se move. “É crucial que o carro seja capaz de se mover e de parar completamente. Tratar do equilíbrio é algo extremamente cirúrgico”, explica.

 

Ruan compara a função à de uma orquestra: chassi, aerodinâmica e powertrain precisam tocar em harmonia. Um grau a mais de camber (inclinação das rodas) ou um amortecedor mais rígido pode mudar completamente o comportamento do carro. “O pneu é a conexão direta com o solo. Se ele estiver mal ajustado, perdemos eficiência”, explica.

 

Antes de pisar na pista, tudo é testado em softwares, como Python, SolidWorks e telemetria, todos simulando o comportamento real. “Não existe cálculo exato para achar o melhor ajuste de suspensão, mas a experiência e as simulações nos deixam muito perto da perfeição”, diz Ruan.

 

Protótipo de conjunto de suspensão traseira da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Protótipo de conjunto de suspensão traseira da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Powertrain: o coração elétrico

 

O powertrain é o coração do carro, e também sua parte mais cara. O sistema, composto por motor, bateria, inversor e transmissão, é responsável por converter energia elétrica em movimento.

 

“O inversor é onde acontece a mágica: ele traduz o comando do piloto em corrente elétrica segura, controlando torque e velocidade. Sem isso, o carro seria ou manso demais ou completamente descontrolado”, explica Leonardo.

 

O desenvolvimento completo do powertrain leva de dois a três anos e custa no mínimo 60 mil reais sem patrocínio, valor que a equipe encara como investimento em pesquisa. “O que desenvolvemos aqui serão as bases de tecnologias futuras mais acessíveis”, diz Leonardo.

 

A eficiência vai além da ausência de emissões. O sistema utiliza frenagem regenerativa, tecnologia que reaproveita a energia da desaceleração.

 

O time chega a usar algoritmos de evolução diferencial para otimizar o pack de baterias, e controle em cascata duplamente sintonizado para maximizar o desempenho do sistema de tração.

 

Protótipo em Python e CAD da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Protótipo em Python e CAD da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Body & Frame: a espinha dorsal da velocidade

 

Já no setor de Body & Frame, coordenado por Eduardo Almeida, o foco é o chassi, a estrutura que sustenta todos os sistemas e protege o piloto. “Ele precisa ser leve, rígido e seguro. A velocidade, estabilidade e segurança dependem dele”, afirma.

 

O chassi é projetado em CAD, com apoio de impressão 3D e gêmeos digitais, o que permite testar virtualmente sem desperdiçar material físico. Nele, existem três tipos principais – o primeiro é o tubular, feito em aço, simples e econômico.

 

O segundo, chamado de híbrido, mistura tubos e compósitos, enquanto o terceiro, o monocoque, é feito de fibra de carbono, leve e resistente.

 

Algumas partes são pensadas para deformar em impactos, como o atenuador de choque, que absorve energia sem comprometer o desempenho. “O fluxo de ar, a distribuição de peso e os pontos de fixação são todos planejados. Cada detalhe interfere na performance e na segurança”, explica Eduardo.

 

Protótipo em Python e imagem realista da estrutura do carro da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing
Protótipo em Python e imagem realista da estrutura do carro da Xangô E-Racing | Foto: Divulgação I Xangô E-Racing

 

Oficina sustentável

 

O processo de elaboração do carro e de todos os seus sistemas é longo – mas mantém a sustentabilidade em todas as etapas, fazendo com que ela não esteja apenas no motor elétrico, mas também na oficina.

 

Pensando no meio ambiente, a equipe reutiliza alumínio de chassis anteriores, controla o uso de insumos, evita testes físicos desnecessários e tem planejamento de descarte correto para baterias e componentes eletrônicos.

 

Pedro explica que os conceitos da Indústria 4.0, como manufatura digital, digital twins (modelo virtual idêntico ao carro) e controle de produção, reduzem desperdício e consumo energético. 

 

“O nosso digital twin ajuda a equilibrar desempenho e impacto ambiental. Nele conseguimos analisar materiais e equipamentos para obter o máximo de desempenho com o mínimo de energia”, afirma.

 

Trovão que limpa a Bahia

 

O nome Xangô, orixá dos trovões e da justiça, traduz a essência da equipe: força, identidade e propósito coletivo. “É sobre provar que somos capazes de não apenas acompanhar, mas de ajudar a construir o futuro da mobilidade no Brasil e no mundo”, diz Leonardo.

 

Enquanto o carro ainda ganha forma entre códigos e simulações, a equipe já deixa um legado. Com cada linha de código e cada tubo de alumínio reaproveitado, a Xangô E-Racing reafirma que a engenharia do futuro é verde, colaborativa e também feita na Bahia.

 

Quando o protótipo finalmente roncar em Piracicaba, então, o som não será de combustão como por tantos anos e ainda hoje domina os torneios de Fórmula. No lugar dele, aparecerá o trovão limpo e silencioso da inovação sustentável carregado pela Xangô das oficinas da Politécnica até as pistas do Brasil.

 

 

 


Marina Branco – Marina Veiga Branco é estudante de Jornalismo na FACOM I UFBA e membro da presidência da Liga de Jornalismo Esportivo da UFBA. Atualmente, atua como jornalista esportiva no Portal A Tarde, tendo desempenhado a mesma função no Jornal Correio. Fora do jornalismo, trabalha com geopolítica e linguagens. 

 

Sofia Nachef – Sofia Gallo Pedreira Nachef é estudante de Jornalismo na FACOM I UFBA e social media na Superintendência de Meio Ambiente e Infraestrutura da UFBA. Além do jornalismo, possui experiência como designer freelancer e fotógrafa.

 

A motivação para a escolha da pauta nasceu do interesse em compreender como a sustentabilidade vem se materializando dentro da universidade por meio de iniciativas estudantis. O surgimento da equipe Xangô E-Racing, primeira de Fórmula SAE Elétrica da Bahia, apareceu como um exemplo simbólico dessa transformação, com um grupo de jovens engenheiros que transforma a transição energética global em prática cotidiana, desenvolvendo um carro de corrida movido a energia limpa. A pauta foi escolhida pela relevância ambiental e educacional do projeto, que ultrapassa o universo automobilístico e reflete a formação de uma nova geração de profissionais comprometidos com a inovação sustentável.

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