Literatura independente no estado desafia o mercado tradicional e dá voz a novos autores e narrativas
Kamila Macedo (@kamzmacedo) e Venicius Rodrigues (@veniciuzz)
Mesmo com o crescimento do acesso à internet e à diversidade de plataformas de leitura, o Brasil ainda enfrenta desafios estruturais quando o assunto é o hábito de ler. Segundo a pesquisa realizada em 2024 pela Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, apenas 47% da população com mais de 5 anos leu pelo menos um livro nos três meses anteriores à pesquisa, uma queda em relação aos 52% registrados em 2019. A média de livros lidos também caiu para 3,96 por ano, sendo que apenas 1,17 são de literatura lidos por vontade própria. A leitura segue sendo influenciada por fatores como escolaridade, renda e localização, e o Sudeste concentra ainda a maior proporção de leitores do país. Enquanto isso, regiões como o Nordeste, embora representem 25% dos leitores nacionais, viram o percentual de leitores cair de 48% para 43% entre 2019 e 2024.
Nesse cenário, a literatura independente tem se consolidado como um caminho possível e importante para democratizar o acesso à produção e circulação de livros no Brasil. Na Bahia, iniciativas como editoras autônomas, feiras literárias, saraus e coletivos culturais vêm abrindo espaço para autores que escrevem a partir das periferias, dos territórios das comunidades indígenas e das vivências LGBTQIAPN+. Publicar de forma independente, às vezes com recursos limitados e redes colaborativas, tornou-se uma maneira de romper com as barreiras impostas pelo mercado editorial convencional e de afirmar narrativas que historicamente foram invisibilizadas e silenciadas.
Publicação além do mercado tradicional
Criada em 2023 por Gabriel Lima e Antonio Bastos, a Editora Folhetim surgiu do desejo de construir um projeto coletivo voltado à literatura, com o propósito de criar novas possibilidades de acesso e circulação. A fundação da editora foi diretamente influenciada por dados sobre o cenário literário do Brasil e por inquietações compartilhadas entre os fundadores. “O motivo da fundação da Folhetim surgiu de um anseio da gente construir algo juntos. Também com um resultado muito direto de uma pesquisa que a gente leu a respeito da leitura no Brasil”, conta Gabriel. Para Antonio, a iniciativa reflete uma crítica à lógica das grandes editoras: “A gente percebeu que o mercado editorial não está preocupado em atender o público em si. É. Ele está mais preocupado em moldar o público para ele”.

Para garantir que os livros cheguem ao público, a editora aposta em uma distribuição direta e acessível. Além da presença online, as vendas acontecem nas ruas de bairros como Santo Antônio Além do Carmo, Rio Vermelho, Barra e Imbuí. Em vez de espaços fixos, Gabriel e Antonio circulam pelas ruas apresentando a editora e os títulos já publicados. Desde então, mais de sete mil cópias já foram vendidas. “Eu fiquei muito emocionado na hora. Porque eu estava morrendo de medo de não ser possível vender livros na rua. A gente não tinha testado isso ainda”, lembra Gabriel sobre a primeira venda.
Mais do que vender livros, a Folhetim busca criar experiências de leitura e acesso à literatura para pessoas que muitas vezes nunca tiveram contato com esse universo. O retorno do público é o que impulsiona o projeto a continuar nas ruas e nas redes. “Isso é uma parada que é muito gratificante para a gente. Quando as pessoas dizem que foi o primeiro livro que elas leram, quando elas gostam muito já é ótimo, mas quando é o primeiro livro, é fantástico”, diz Antonio.
Formado em Letras e em Artes pela UFBA, o poeta George Lima encontrou na escrita uma forma de eternizar instantes desde a infância. Em 2022, diante das dificuldades de publicação e dos contratos pouco vantajosos oferecidos por editoras tradicionais, decidiu criar sua própria editora. A decisão veio após recusar uma proposta que, segundo ele, o tornaria refém de um modelo de prestação de serviços que não valorizava o autor. “Se é para fazer tudo e ainda pagar por isso, eu mesmo faço”, conta. Com a experiência, passou a defender a publicação independente como forma de conquistar autonomia sobre a própria obra e 21romper com práticas comuns no mercado editorial, que muitas vezes limitam o autor até mesmo em tiragens futuras.

O primeiro título publicado foi O Acaso, uma coletânea de poemas escritos ao longo da vida, muitos deles durante a graduação. Com projeto gráfico e fotografias assinadas pelo próprio autor, o livro reflete sua trajetória pessoal e criativa, além de carregar referências afetivas, como a cena da infância em que tentou capturar o pôr do sol desenhando e mais tarde descobriu, por meio da escrita, outra forma de guardar o instante. Publicado pela sua própria editora, o livro abriu portas para a circulação do seu trabalho. “Foi a melhor coisa que eu fiz na vida”, afirma, ao lembrar o impacto que a publicação teve em sua trajetória.
Além da publicação, George tem se dedicado à realização de oficinas de criação literária, em que recebe pessoas de diferentes trajetórias interessadas em retomar o contato com a escrita. Muitas vezes, esses encontros revelam histórias marcadas por traumas escolares ou pela insegurança de se reconhecer escritor. Para ele, mais do que técnica, escrever é resgatar uma potência que o mundo insiste em silenciar. “Você nasceu com essa capacidade imaginativa e o mundo tenta roubar, mas você defende”, afirma.
Caroline Anice transita entre a escrita, a psicologia, a mentoria e a pesquisa acadêmica como mestranda em Saúde da População Negra e Indígena da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mas é também, como ela mesma se define, “baiana de Salvador, sacerdotisa da palavra viva, mulher das águas e de axé”. A relação com a literatura começou cedo, com o incentivo de seus pais – com sua mãe sendo professora e seu pai sendo um grande contador de histórias. “Desde criança, fui nutrida pela leitura dos livros que minha mãe pegava emprestado da escola e pelas aulas de Redação no colégio, escrevia em diários, cadernos de poesia, depois passei a escrever em blogs e sempre presenteava e era presenteada pelos meus afetos com cartas e cartões”, conta a escritora.
Sua primeira publicação aconteceu em 2016, com o conto no livro O Movimento Leve, ao ser uma das vencedoras do Prêmio Jovem Malê de Literatura da Editora Malê. Desde então, Caroline participou de mais quatro antologias: Raízes: Resistência Histórica (Venas Abiertas), Literatura Negra Feminina: Poemas de Sobre (Vivência) (Mjiba), Levantes da Resistência (Editora Expressão Popular) e Juventude Quer Viver: Esperançar em Tempos de Pandemia (Editora Expressão Popular).

Contudo, dificuldades surgiram no caminho da escritora, especialmente no que diz respeito à entrada no mercado, ao processo de editoração e à distribuição, o que pode refletir no racismo estrutural que ainda existe na sociedade. Apesar desses desafios que perpassam a publicação independente no país, Caroline explica que optou por esse caminho como forma de evidenciar vozes como a dela: negras, femininas, periféricas e insurgentes. “Ver mulheres se emocionarem com meus textos e sentirem que foram realmente compreendidas é impagável”, declara.
“Publicar independentemente foi uma forma de não esperar autorização para existir artisticamente, mas sobretudo libertar minha criatividade e assumir o poder que tenho em criar, produzir e prosperar individual e coletivamente através da palavra”.
Ainda no campo independente, a escritora foi responsável por criar e conduzir oficinas de escrita, entre elas Escrita Viva: A Palavra é Uma Trincheira e Oficina de Escrita Afetiva Parideiras de Sonhos. Além disso, Anice publicou em portais como Geledés, Blogueiras Negras e Brasil de Fato. Também criou um projeto autoral chamado Através do Espelho, uma imersão em grupo que combina exercícios de escrita, fala, leitura e afirmações com práticas terapêuticas. Até o momento, já foram realizadas três edições.
Literatura como forma de resistência (ou ataque)
Com uma diversidade de catálogo pequena, as grandes editoras no Brasil ainda privilegiam, majoritariamente, autores brancos, do eixo Rio-São Paulo, homens e de classe média-alta. Segundo levantamento desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), liderado pela pesquisadora, professora e escritora Regina Dalcastagnè, ao analisar 692 romances de 383 escritores brasileiros publicados entre 1965 e 1979, constatou-se que 93% dos autores eram brancos. Nas décadas seguintes, o cenário praticamente não se alterou: entre 1990 e 2004, o índice foi de 93,9% e, entre 2005 e 2014, chegou a 97,5%. Ou seja, mesmo no século XXI, o mercado editorial brasileiro seguiu repetindo a lógica de exclusão racial e social do século anterior.
Em um mercado editorial marcado por desigualdade social, racial e de gênero, recorrer à publicação independente pode ser a alternativa para pessoas racializadas e LGBTQIAPN+ na busca de ter seus livros vistos, publicados e lidos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Censo Demográfico de 2022 revelou que 56% da população brasileira se autodeclara preta ou parda, o que reforça o abismo entre quem escreve e quem é publicado em larga escala.
Publicar uma obra não é apenas um ato criativo, mas também político e de sobrevivência. É o que ressalta George Lima, ao destacar a situação diante de um mercado editorial que impõe contratos frequentemente injustos. “Porque dessa forma você meio que não se vende tanto para o capital. Não estamos falando apenas de dinheiro, mas de reconhecimento do trabalho”, afirma o escritor.
Já Gabriel Lima enxerga a literatura como uma ferramenta ativa de enfrentamento. “Eu uso ela como forma de ataque. Não resisto. Minha defesa é o ataque”, declara. Para ele, não se pode confundir pessoas que resistem com pessoas que atacam: “Às vezes não dá o mérito delas (das pessoas que atacam) de guerreiras. Se a gente ficar parado, resistindo, a gente só tem a retroceder. Eu agradeço a quem segurou, resistiu”.
Sendo como movimento de resistência ou ataque, a literatura independente fascina. Desperta interesse e gera identificação.
Para além das livrarias
Uma das feiras literárias mais famosas, a Bienal do Livro, ocorre de dois em dois anos em diversas cidades do Brasil. A última Bienal do Livro Bahia, realizada em Salvador, registrou mais de 100 mil visitantes entre os dias 26 de abril a 1º de maio de 2024, contando com uma programação com mais de 80% dos convidados sendo baianos – de acordo com dados da CNN Brasil. Apesar de ser um evento literário com patrocínio privado, contribui para a divulgação de autores independentes em seus espaços.
No entanto, mesmo com o engajamento positivo, uma observação gera preocupação. Entre os principais estandes – Rocco, Companhia das Letras, HapperCollins e Alt com Globo Livros –, apenas um autor negro e três autores (incluindo o autor negro) assumidamente LGBTQIAPN+ entraram na lista dos livros mais vendidos, todos publicados por grandes editorias.
Diante desses eventos com iniciativa privada, surgem alternativas de divulgar literatura por meio de feiras literárias, saraus e redes sociais, sendo espaços fundamentais para a circulação de obras que dificilmente ganham visibilidade no circuito tradicional.
Como autora independente, Caroline Anice explica a importância desses lugares como forma de manter a literatura viva: “São verdadeiros quilombos literários”. Buscar apoiar a literatura independente se torna crucial na luta por manter o mercado editorial nacional mais diverso, seja seguindo um perfil de escritores em uma rede social, seja tirando um tempo para visitar esses eventos independentes. “Os saraus, feiras, festivais, slams e redes sociais são lugares de encontro, visibilidade e celebração das nossas histórias. Tudo isso fortalece a escrita e uma literatura viva, pulsante e comprometida com o nosso tempo”, complementa.

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Kamila Macedo é estudante de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e atualmente é estagiária de comunicação no Programa Acelera da Fundação José Silveira.
Venicius Rodrigues é estudante de Jornalismo na UFBA e atua como repórter no jornal A TARDE e se interessa por jornalismo cultural e fotografia.
O interesse por essa pauta surgiu do desejo de compreender como está a atuação de algumas editoras e autores(as) independentes na Bahia, considerando um cenário onde a publicação tradicional ainda é marcada por barreiras de classe, raça, território e gênero.