Entre concursos e figuras públicas, festa popular resgata memória da Independência do Brasil na Bahia
Laiane Apresentação (@lai.apresentacao) e Gabriel Vintina (@gabrielvitina )
Em meio ao Inverno de temperaturas expressivas, o sol brilhou mais alto e mais forte entre o Largo da Lapinha e o Centro Histórico de Salvador, no dia 2 de julho. Há 202 anos a população baiana tem motivos para celebrar uma nação independente. O segundo dia do mês de julho comemora a Independência do Brasil na Bahia, quando, em, as tropas portuguesas remanescentes foram expulsas do território nacional com tropas formadas por populares, povos originários e escravizados.
A festa do 2 de Julho, comemorada na Bahia, expressa uma dimensão profundamente popular da história do Brasil. Diferente de outras datas oficiais, ela não se limita a atos cívicos estatais ou a representações simbólicas encenadas por elites políticas. Trata-se de uma comemoração enraizada nas ruas, mantida pelo povo, em que a memória coletiva se manifesta por meio de cortejos e gestos de pertencimento.
As homenagens aos heróis e heroínas da guerra se iniciam bem antes, no dia 25 de junho, quando a capital simbólica da Bahia é transferida para Cachoeira, no Recôncavo baiano, a 117 km de Salvador. A data marca o protagonismo da cidade no processo de independência, num movimento que antecedeu o famoso Grito do Ipiranga, como aponta a jornalista e doutora em Antropologia, Cleidiana Ramos. “O levante começou no Recôncavo: Santo Amaro fez o primeiro movimento com uma sessão na sua Câmara Municipal em junho de 1822. Em seguida, 25 de junho, Cachoeira”.
Esta é apenas uma das tradições que cercam a data, que tem o povo baiano como protagonista. Murilo Mello, historiador e pesquisador da data, reforça o protagonismo popular: “O 2 de Julho teve participação de ex-escravos, de vaqueiros, de gente do povo, e por isso nos representa mais que o 7 de Setembro”. A seu ver, a data é uma chave para entender o Brasil real: diverso e forjado na luta.
Altar da liberdade
Em Salvador, a data marca um momento de grande mobilização popular. Reúne diversas pessoas pelas ruas e cria outras tradições. Se na Ladeira do Largo do Pelourinho o Arco do Triunfo é hasteado representando a chegada do povo à capital após a luta, um pouco antes, no Santo Antônio Além do Carmo, casas têm suas fachadas decoradas em homenagem à data e ao desfile cívico , concorrendo ao ao grande concurso promovido pela administração municipal.
São pessoas comuns que mantêm viva a tradição, ressignificando símbolos, construindo homenagens e reforçando a memória de resistência. Há 35 anos, Maria de São Pedro transforma sua casa em um verdadeiro “altar da liberdade”. Ela decora sua fachada anualmente em homenagem à Independência da Bahia. “Para mim, é muito importante. Eu me dedico o ano todo, pensando no tema do ano que vem. Meus familiares me ajudam a finalizar a decoração, é um trabalho com muita satisfação e amor em meu coração”, ressalta ela, que faz aniversário na mesma data “Nem sei mais quantas vezes ganhei [o concurso], porque já perdi a conta”.
A transformação da festa também ocorre nos personagens que ganham espaço. Maria Felipa, antes desconhecida para muitos, hoje é celebrada ao lado de Maria Quitéria e Joana Angélica. “As heroínas da festa são todas ‘alternativas’. Maria Felipa, por exemplo, era uma mulher negra, irreverente, que organizou resistência usando até cansanção”, lembra Cleidiana Ramos.
Para Murilo Mello, essas transformações demonstram que “qualquer comemoração cultural é algo vivo, não está na prateleira do museu”. A cada geração, o 2 de Julho é ressignificado, ganhando novos heróis e novas expressões, sem nunca perder o vínculo com o povo.
Guardiões da Independência
A ligação profunda do povo com a festa se expressa também nos símbolos que desfilam pelas ruas, como o Caboclo e a Cabocla. Símbolos centrais da festa, eles não são apenas esculturas: são documentos vivos de uma história popular. Quem os conhece de perto é o restaurador José Dirson, responsável por devolver vida às figuras no fim dos anos 1990. “Eles pareciam uns monstrengos, cobertos por quase 50 camadas de tinta. Os olhos de vidro, o short do Caboclo, o saiote da Cabocla… tudo estava escondido”, relata.
A restauração revelou detalhes esquecidos e reafirmou a importância dessas figuras. “O Caboclo representa o homem brasileiro, o mestiço, que fere com uma lança o dragão português. É inspirado em São Miguel Arcanjo. Todo o carro alegórico é uma ode à Independência da Bahia”.
José Dirson encontrou jornais antigos dentro da madeira das esculturas, pedaços de O Correio, de 1911, 1913, 1923, usados como preenchimento de buracos causados por cupins. “Esses documentos contam a história das próprias restaurações. O que fazemos hoje é garantir que as gerações futuras vejam a obra como ela é, sem falsificação”.
A Cabocla surgiu 20 anos depois, em 1849, como símbolo conciliador. Seu criador queria substituir o Caboclo, considerado agressivo demais. Mas o povo reagiu. “A Associação dos Veteranos respondeu: ‘Ou o Caboclo desfila ou vai correr sangue’. Por isso, Salvador é a única cidade onde desfilam juntos: o Caboclo e a Cabocla”, afirma Cleidiana.
Foto: Ana Lucia Albuquerque / CORREIO
A tradição do caboclo como símbolo popular se sustenta na resistência dos invisibilizados. “Negros e indígenas formaram alianças. O caboclo ganha até uma dimensão religiosa. Ele é um encantado, uma força originária da própria terra”, completa a pesquisadora.
A força simbólica desses ícones não se dissocia do contexto maior da festa, que vai além de uma celebração regional. “O 7 de Setembro foi um ato isolado. O 2 de Julho foi uma guerra, com suor, sangue e fome. Salvador estava cercada e o povo venceu”, diz Murilo Mello. Para ele, a Bahia era peça essencial do novo país e só com sua anexação a independência foi consolidada.
Com o tempo, a compreensão da festa amadureceu. “Antes, a data era para valorizar a gente mesmo. Agora passou a ser vista como marco fundamental para o país inteiro”, conta Cleidiana.
Mesmo assim, o Brasil ainda deve à data o devido destaque. “O 2 de Julho é uma data local com apelo regional. Mas é preciso reposicioná-la como parte integrante da história do Brasil”, defende Murilo. E enquanto isso não acontece, é o povo da Bahia que reaviva anualmente essa memória.
No último dia 1 de julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que participou do desfile cívico no bairro da Lapinha, encaminhou uma proposta ao Congresso Nacional para nacionalizar a data, comemorada atualmente no âmbito estadual. O projeto de lei pretende tornar o dia 2 de julho o Dia Nacional da Consolidação da Independência do Brasil.
O protagonismo musical das fanfarras
Outros participantes ativos do cortejo cívico são os estudantes de escolas estaduais. Pela manhã, cerca de 17 fanfarras e bandas marciais desfilaram da Rua Engenheiro João Pimenta, no Barbalho, até a Praça Municipal com seu corpo coreográfico, suas portas-bandeiras e suas alas de sopro e percussão. Pela tarde, mais 14 fanfarras brilharam na Praça Municipal.
Uma delas foi a fanfarra do Colégio Estadual Américo Simas, da cidade de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador. A Fanresol, como é também conhecida a Banda Marcial Renascer do Sol possui em seu currículo o título de Tricampeã baiana – pelas vitórias em 2010, 2014 e 2023 no Campeonato Baiano de Fanfarras e Bandas.
Imagem cedida pela Fanresol
Henrique Queirós, de 45 anos, é o grande responsável pela existência da banda, fundada por ele em 2004. Presidente e regente da Fanresol, Henrique conheceu as fanfarras em 1990, quando ainda frequentava o ginásio (referente às primeiras séries do ensino secundário).
“A banda é uma ferramenta de inclusão e transformação, pedagogia dentro e fora da escola”, declara Henrique. Para ele, a música “encanta e transforma” e a participação do aluno na banda, que participa de desfiles cívicos e competições, exige dedicação e compartilhamento.
A Fanresol é composta por cinco alas: a Baliza, que costuma liderar a fanfarra com um bastão, a Percussão, o Cívico(composta pelas bandeiras), o Cartel (com a identificação da banda), e o Sopro.
“Imagina o aluno chegar sem ter tido na maioria das vezes qualquer contato com a música ou sequer conhecer o que é música e depois ver esse mesmo aluno tocando um instrumento de sopro ou percussivo. Isso faz com que eu insista todos os dias em fazer com que a banda exista”, explica.
Gabriel Vintina – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, estagiário de produção da Tv Bahia, atua como repórter e produtor de conteúdo freelance.
Laiane Apresentação – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, estagiária da coluna Holofote do site Bahia Notícias e fundadora do blog literário Estreia.
A motivação para esta pauta parte da necessidade de resgatar a memória do 2 de Julho como marco da identidade baiana e em celebrar as conquistas populares travadas na Bahia contra as tropas portuguesas remanescentes pós-grito da Independência, em 7 de setembro de 1822.