Entre políticas públicas, experiências pessoais e mobilizações coletivas, a acessibilidade em eventos e espaços artísticos emerge como pilar fundamental para uma capital mais inclusiva
Duda Santa Rita (@dudasritta) e Laura Pita (@_laurapita_)
Da Barra a Itapuã, Salvador pulsa arte e cultura em sua pluralidade de ritmos, manifestações e cores. Contudo, nem todos acessam essa riqueza em sua plenitude. A falta de acessibilidade em muitos espaços e eventos artístico-culturais ainda exclui pessoas com deficiência de experiências fundamentais para a cidadania, principalmente pessoas com deficiência visual e auditiva, foco desta reportagem, cujas experiências evidenciam a urgência de práticas culturais mais acessíveis.
Segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são 14,4 milhões de brasileiros com deficiências físicas, sensoriais, cognitivas e/ou sociais. Por muito tempo, essas pessoas foram apartadas da vida cultural da cidade. “É um público que nunca teve acesso aos espaços de cultura enquanto um lugar de entretenimento e de diversão. Precisamos entender que esse público também gosta de consumir arte”, ressalta o audiodescritor Juniro Formiga. Para Ednilson Sacramento, jornalista e consultor em audiodescrição, que é cego, “se esses eventos não assegurarem recursos de acessibilidade, isso quer dizer que vamos ficar por muito mais tempo fora da vida cultural”.
A acessibilidade em espaços e eventos culturais, então, é “fundamental para garantir que todas as pessoas, independentemente de suas condições físicas, sensoriais, cognitivas ou sociais, tenham o direito de participar plenamente da vida cultural”, afirma Manuela Sena Dias, gerente de Equipamentos Culturais da Fundação Gregório de Mattos (FGM). A gestora da Acessu – Acessibilidade Universal, audiodescritora e atriz cega, Iracema Vilaronga, reforça: “O público com deficiência não pode ficar excluído, é uma questão de cidadania, é uma questão ética”.
Vilaronga destaca que as soluções de acessibilidade no cenário soteropolitano “têm chegado muito por força de lei, porque hoje é critério para a aprovação de edital que tenha o item acessibilidade”. Segundo avalia Sandra Rosa, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e criadora do coletivo Saídas Culturais Acessíveis, a influência da Lei de Incentivo à Cultura, da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e – mais recentemente – a Paulo Gustavo, trouxeram uma grande mudança no olhar e no fazer artístico-cultural da cidade.
Obstáculos persistem
Apesar dos avanços em editais e leis, com a inclusão obrigatória de itens que visam tornar os projetos culturais e artísticos mais acessíveis, questões como orçamento e tempo de produção ainda são centrais para a aplicação efetiva dessas soluções de acessibilidade, por vezes comprometendo a qualidade e variedade dos recursos. “A gente passou a ter mais coisas – bem mais do que tinha antes -, só que ainda com pouquíssima qualidade. Na maioria das vezes, não por causa dos profissionais, mas por causa, principalmente, do tempo curto ou dos valores que são pagos”, ressalta Sandra Rosa, que também atua como audiodescritora. “Normalmente os orçamentos são muito apertados e em algumas das vezes a produção cultural oferta apenas uma modalidade de acessibilidade e, isso, na minha opinião, é uma medida de preconceito, porque se eu apenas ofereço acessibilidade para surdos estou deixando uma série de outras deficiência de fora”, reforça Ednilson Sacramento.
Nesse contexto, diversos obstáculos ainda são encontrados, concentrados principalmente no tripé da acessibilidade: atitudinal, arquitetônica e comunicacional. “As maiores dificuldades residem na mentalidade da comunidade cultural de Salvador, que ainda não compreendeu que, para além da legislação, existe de fato um preconceito, muitas vezes pelo desconhecimento”, salienta Ednilson Sacramento. A fala do consultor em audiodescrição revela um problema na acessibilidade atitudinal. Sobre a acessibilidade arquitetônica, Elinilson Soares, um dos criadores do coletivo Rua Sinalizada, destaca: “A gente precisa de várias questões num show: cobertura para pessoas com deficiência, intérpretes de Libras nos espaços. Mas percebo que não é dada a devida importância para isso, para que a gente tenha conforto, para que visualize bem também. Às vezes, em shows, espetáculos, colocam um cercado com pessoas com deficiência distante do palco”. Em relação à acessibilidade comunicacional, Iracema Vilaronga destaca: “A divulgação [dos eventos] precisa chegar nesse público”.
Embora os desafios ainda sejam evidentes, o público com deficiência é cada vez mais presente na cena artístico-cultural soteropolitana. Exemplos como o do terapeuta integrativo cego, Edvaldo Palma, mostram isso: “Minha experiência com espetáculos e shows com acessibilidade – principalmente com audiodescrição – começou em 2016, em espetáculos acessíveis no Teatro Vila Velha. Já durante a pandemia, surgiu o Coletivo Saídas Culturais Acessíveis, com o intuito inicial de divulgar saídas com audiodescrição. Foi lá que fiz amigos, tanto pessoas com deficiência quanto outras, e também tive acesso a mais eventos. Depois disso, vieram muitas oportunidades de assistir a espetáculos e participar de cerimônias. Mesmo assim, ainda não tinha encarado todo tipo de festa, até que dois amigos me convidaram para o Carnaval. Senti o chão da rua tremer, a vibração, o calor, conheci pessoas. Não perco mais o Carnaval. Tento acessibilizar minha ida a esses lugares. E assim, minha vida, aos quase 30 anos, se tornou bastante cultural”.
Acessibilidade desde a plateia ao artista
Organizar eventos culturais ou artísticos acessíveis para todos é entender que há mais de um tipo de acessibilidade e recursos que precisam ser pensados para garantir que o público com deficiência possa acessar e aproveitar aquela produção, como o acesso com rampas e elevadores, banheiros adaptados, piso tátil, intérpretes de Libras, audiodescrição, legendagem, material em braille, entre outros. Entretanto, ainda há limitações no entendimento do que é, de fato, acessibilidade, como observa Juniro Formiga, que possui mais de dez anos de experiência no setor de acessibilidade: “Quando lá no formulário pedia ‘Qual recurso de acessibilidade você vai usar no seu projeto?’, as pessoas diziam que era lanche, outro dizia que ia distribuir ingressos… Então, as pessoas ainda não sabem quais são os recursos necessários, de que forma eles são aplicados no seu projeto”.
Através da arte, performance e intervenção, o Coletivo Rua Sinalizada visa levar esses e outros recursos de acessibilidade para espaços culturais da capital baiana. Criado em 2023 por um grupo de pessoas ouvintes – Lucas Sol e Cintia Santos – e surdas – Daisy Souza e Elinilson Soares – o coletivo nasce a partir de inquietações sobre a falta de acessibilidade em Salvador. “O Rua Sinalizada é um movimento de perceber e trazer essas pessoas com deficiência para a rua. Das pessoas não nos verem nessa rua e a partir desse momento ver a gente na cidade batendo papo, bebendo, construindo junto”, destaca Elinilson. “Então, a gente vai para os lugares da cidade e propõe ações artísticas, que são variadas. Às vezes a gente utiliza a linguagem da poesia, às vezes é marcar para não fazer nada…”, explica Lucas Sol. Daisy Souza defende que o coletivo é como um manifesto: “A gente sempre está nesse papel de reclamar também, porque a acessibilidade não está sendo garantida da melhor forma”.
Para além do potencial enquanto público, é preciso pensar nas pessoas com deficiência também enquanto artistas e profissionais da cultura, atuando em todas as esferas do setor artístico-cultural. “Eu acho que o que precisa mesmo é que as pessoas tenham essa consciência, que é uma condição necessária ver a pessoa com deficiência como público em potencial, como artistas, como profissionais, não somente como artista, como produtores, ver essas pessoas o tempo todo dentro do contexto da arte e da cultura, e participando dos projetos”, reforça Iracema Vilaronga. Portanto, se torna imprescindível pensar em soluções de acessibilidade não só para quem está na plateia, mas também para aqueles em cima do palco e por trás da produção dos eventos, como explica Iracema: “Se eu pensar em um artista, por exemplo, com deficiência física, entrar no palco e não tiver acessibilidade no palco, no camarim, no banheiro, então já foi, não tem autonomia, não tem segurança, não tem conforto”.
“A gente trabalha várias formações que fazemos para que eles melhorem, consigam adentrar o mercado – não só frequentar os espaços culturais, mas também poder fazer parte enquanto trabalhadores”, explica Sandra Rosa, criadora do Saídas Culturais Acessíveis. Pensado para combater o capacitismo e promover a acessibilidade em espaços de arte e cultura, o coletivo surge em 2021, através de um convite para pensar a acessibilidade do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM). Por meio das “saídas”, além de incentivar a socialização, o grupo busca reivindicar a acessibilidade em ambientes que não têm, visitando diversos espaços de Salvador. “A ideia é realmente estar mobilizando a cidade com este grupo – que não tem só pessoas com deficiência. É importante dizer que o grupo tem pessoas com deficiência que são público, mas também são profissionais de diversas áreas, são artistas, e a gente também tem buscado promover isso com eles”, completa Sandra.
Novas perspectivas
Quando se fala da divulgação desses eventos, a tecnologia e as redes sociais se tornam importantes aliadas. Para os membros do grupo das Saídas Culturais Acessíveis, as programações culturais chegam pelo WhatsApp, através do qual os participantes também organizam os detalhes das visitas e/ou passeios pela cidade. “Da mesma maneira que você divulga a capacidade da casa, o preço do ingresso, data, horário, etc é importante que os dados referentes a acessibilidade também sejam divulgados para que a pessoa – ao ler um jornal, ao acessar um site da internet – consiga se programar”, diz Ednilson Sacramento. Plataformas como Instagram e Facebook oferecem recursos para acessibilizar as publicações, como o texto alternativo nas imagens – para leitores de tela – e as legendas nos vídeos, que podem ser usados para fazer com que as informações disponíveis cheguem ao público com deficiência.
Olhando para o cenário da acessibilidade nos últimos anos, a visão atual é marcada por mudanças e conquistas, resultado tanto da obrigatoriedade nos editais – impostas por leis de inclusão – quanto do trabalho feito por coletivos como o Rua Sinalizada e o Saídas Culturais Acessíveis. “Hoje eu posso dizer que nós já estamos numa fase importante na cidade de Salvador, que é termos o que escolher em determinados finais de semana, dentre dois ou três espetáculos acessíveis, qual deles a gente vai frequentar”, exemplifica Ednilson Sacramento. A perspectiva é de ainda mais transformações a caminho, em busca do exercício de uma acessibilidade efetiva que garanta a experiência da arte e da cultura, sem barreiras ou ruídos, para todos os públicos.
Duda Santa Rita – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, atua com comunicação interna e redes sociais. Tem como principais interesses música, cultura e relações internacionais.
Laura Pita – Estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA, repórter estagiária do caderno de Economia do Jornal A Tarde.
A escolha da pauta surgiu a partir da urgência de se discutir a acessibilidade, tanto para o público quanto para artistas com algum tipo de deficiência, em espaços e eventos artístico-culturais em Salvador. Ao reconhecer essas experiências como essenciais para a garantia plena dos direitos de pessoas com deficiência, o tema se mostra relevante ao evidenciar como a inclusão é indispensável para que todos os públicos tenham acesso à produção cultural e artística na capital baiana.
