Do repórter multimídia ao jornalista de dados

O dilema dos conteúdos multimídia e a estagnação dos currículos universitários marcam os 30 anos do jornalismo digital

 

Ana Catharina Rocha (@anacatharinafr) e Rosana Vieira (@rosa_viieira)

 

Em três décadas, o jornalismo digital deixou de ser uma tendência e tornou-se o centro da prática jornalística. Com o início da convergência jornalística no Brasil em 2005, as grandes mídias passaram por transformações significativas nas suas redações e na produção de seus conteúdos. 

 

O avanço e popularização da internet e de tecnologias digitais influenciaram diretamente nesse processo. De acordo com o IBGE através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 2005, 32,1 milhões da população de 10 anos ou mais de idade acessaram pelo menos uma vez a internet em algum local.

 

A digitalização da informação inaugurou uma nova forma de se fazer jornalismo no Brasil e transformou profundamente a rotina dos profissionais da área, o meio físico perde envergadura e a atualização instantânea de conteúdos multimídia foi ganhando os afetos da audiência. Assim, nasceu o repórter multimídia e com ele, uma nova era no jornalismo que ainda está longe do seu destino final. 

 

Foto: Medium @gersonluizmellomartins

A crescente complexidade da atuação esbarra na necessidade de um domínio tecnológico com mais autoridade. Para o professor e pesquisador Gerson Luiz Martins, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), há uma exigência crescente de que o jornalista compreenda os processos tecnológicos que atravessam a produção da notícia, principalmente, no uso de softwares.

 

A formação do jornalista, hoje ela é muito mais complexa. Então há necessidade, sem dúvida alguma, de uma dedicação maior do profissional. Para que o próprio exercício do jornalismo não seja suplantado pelas tecnologias, pelo software e pelo hardware.” afirma. 

 

A crítica se estende aos cursos de jornalismo das faculdades. Segundo Martins, os cursos superiores ainda caminham atrás das inovações desenvolvidas pelas empresas jornalísticas. “Infelizmente, os cursos de jornalismo não acompanharam as transformações do mercado. Eles ainda dão a impressão de que estão vivendo no século XX”, aponta. 

 

Esse abismo entre a atuação do jornalista e o que é ensinado nas universidades pode ser ainda mais preocupante no cenário atual, quando se tem que lidar com a pressão pela velocidade da informação e a ameaça constante da desinformação. 

 

A pesquisa TIC Domicílio (2024) do Cetic Br aponta que 84% da população com 10 anos ou mais são usuários de internet, ou seja, 159 milhões de pessoas. Esse número é relativamente cinco vezes maior do que o primeiro dado coletado em 2005, que apontava 32,1 milhões de usuários. 

 

Evolução do número de domicílios brasileiros com acesso à internet dos anos de 2005 a 2020. Fonte: Cetic Br

 

E nesta dualidade — entre o ensino universitário e a verdadeira demanda do mercado — está o estudante da Faculdade de Comunicação da UFBA (FACOM), William Ribeiro. Atualmente, estagiando na filial baiana de um grande portal de notícias nacional, o estudante tem dilemas diários. Entenda melhor esse cenário acompanhando a entrevista:

 

 

Para além de ambiguidades na prática da atividade, este descompasso reverbera em na ordem ética e perpassa fortemente a ética da profissão. Segundo o professor Gerson os jornalistas se sentem “pressionados pela instantaneidade da informação e pela desinformação, popularmente conhecida como fake news. Essas duas pressões, vamos dizer assim, que aumentam a responsabilidade do jornalista para as questões éticas.”

 

Lidar diariamente com diferentes formatos midiáticos e lógicas algorítmicas de redes sociais exige uma sensibilidade redobrada para garantir que não haja uma cisão entre a natureza ética da profissão e a prática moralmente desafiadora. A chefe de redação do grupo Metrópole Mariana Bamberg (31) explica que os desafios para conciliar as múltiplas produções jornalísticas – rádio, impresso, redes sociais e portal demandam um planejamento e seguir a linha editorial do veículo.

 

“O principal desafio é a gente conseguir conviver com toda essa dinâmica do jornalismo e manter o planejamento […] Porque são muitas frentes ao mesmo tempo, cada uma com sua lógica, linguagem e urgência. O impresso tem seu espaço, mas já não dita mais o ritmo. A lógica hoje é muito puxada pela internet, então a prioridade acaba sendo o digital.” — explica a jornalista.

 

Foto: Redes sociais

A dinâmica se intensifica nas redes sociais, onde a cobrança pela velocidade das informações e construção de engajamento é ainda maior. Na experiência da coordenadora, o algoritmo “Afeta, sim. Porque a gente acompanha o que tem mais engajamento, o que está performando melhor. E isso influencia nas escolhas de pauta, sem dúvida.”

E se o tempo do jornalismo sempre suou para alcançar o compasso da história, agora parece que corre lado a lado (e gravando um vídeo). “A gente da redação se cobra o tempo todo.

 

Hoje isso é intrínseco à prática do jornalismo, essa demanda pela instantaneidade, pelo furo. […] A instantaneidade está agora como o furo sempre esteve para o jornalismo.” 

 

 

Se antes o jornalismo dependia quase exclusivamente da apuração e da narrativa, hoje sabemos que também depende de dados, métricas e ferramentas digitais. Mariana Bamberg observa que as redações já integram recursos de inteligência artificial, ainda que de forma inicial. “A gente usa mais para análise de audiência do que para produzir conteúdo. Mas é inevitável que isso avance. É um caminho sem volta.”

 

Com o avanço da tecnologia, surgem também novas demandas éticas e editoriais. “Por enquanto, não temos uma diretriz formal para avisar ao público. Mas, se a IA começar a entrar na produção diretamente, isso vai precisar ser discutido com transparência.” 

 

A presença da inteligência artificial já é uma realidade nos bastidores da redação. No Grupo Metrópole, Mariana Bamberg explica que, por enquanto, o uso está restrito à mensuração de audiência e performance: “A gente usa mais para análise de audiência do que para produzir conteúdo. Mas é inevitável que isso avance. É um caminho sem volta.” Apesar do uso técnico, ela aponta que será necessário, em breve, criar diretrizes claras para garantir transparência: “Por enquanto, não temos uma diretriz formal para avisar ao público. Mas, se a IA começar a entrar na produção diretamente, isso vai precisar ser discutido com transparência.”

 

Em paralelo, os profissionais recém-chegados ainda enfrentam dificuldades para acompanhar a velocidade e a complexidade das redações digitais. Mesmo com uma boa formação teórica, a falta de domínio sobre ferramentas e rotinas práticas impõe desafios à inserção profissional. “A gente vê que eles chegam com uma boa base, mas ainda não têm a agilidade que o mercado exige hoje. A prática mesmo, o dia a dia da redação, eles só vão pegar no trabalho”, explica Bamberg. Para ela, o ambiente profissional acaba assumindo o papel complementar; “a formação acadêmica não dá mais conta de tudo. A gente precisa ensinar muito aqui dentro.”

 

Em três décadas, o repórter multimídia deu lugar ao jornalista de dados, pressionado por múltiplas plataformas, algoritmos e demandas de produtividade. Do gravador e do bloco de notas aos painéis de engajamento e dashboards em tempo real, a profissão se redesenha sob lógicas cada vez mais técnicas. O desafio de agora não é apenas narrar os fatos, mas mensurar, indexar, sistematizar, roteirizar, diagramar, gravar, editar… em 30 minutos (e olhe lá).

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Rosana Vieira, bacharela em Humanidades e graduanda do 6º semestre de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia. Estagiária da ASSUFBA-Sindicato. Faz parte da pesquisa do Atlas da Notícia pelo Projor, como pesquisadora voluntária na Bahia. Apaixonada pela vida e muito comunicativa.

Ana Catharina Rocha, bacharela em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia e graduanda do 6º semestre do curso de Jornalismo na mesma instituição. Pesquisadora e bolsista SANKOFA (21-22) na linha das epistemológicas do sul e saúde nas comunidades quilombolas e a noção de linha abissal. Também atuei na assessoria de comunicação da cantora Daniela Mercury e mais recentemente como produtora e apresentadora na Rádio Metrópole de Salvador.

 

A ideia da pauta surgiu a partir da nossa apresentação sobre os 30 anos de Jornalismo Digital com recorte temporal entre 2000 e 2005, mas, além disso, o desejo de contar um pouco da realidade atual dos jornalistas que trabalham com multimídia e os desafios que enfrentam.

 

Imagem em destaque criada pelo ChatGPT.

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