O buraco que a mídia mostrou ao mundo

A tragédia da Fonte Nova, em 2007, antecipou a era digital na cobertura esportiva no jornalismo baiano

 

Gerônimo Santos (@hessoza) e Jamile Araújo (@jamis.araujos)

 

Mais de 60 mil pessoas lotavam o estádio em Salvador para acompanhar o jogo Esporte Clube Bahia x Vila Nova-GO, partida que marcaria o retorno do tricolor à série B do campeonato brasileiro. O silêncio que se seguiu ao apito final no jogo entre Bahia e Vila Nova-GO não foi de decepção ou suspense. Era um silêncio rasgado pelo som seco do concreto rompendo. O Bahia, que acabava de garantir o acesso à série B depois de um campeonato amargando a série C, viu sua festa ser literalmente engolida por um abismo: aos 43 minutos do segundo tempo, a festa virou pesadelo. Parte da arquibancada superior desabou, matando sete pessoas e ferindo dezenas.

 

Welton Araújo, fotógrafo que trabalhava para o A Tarde na época do acidente, recorda que estava escalado para cobrir o jogo com mais dois colegas, Eduardo Martins e Margarida Neide. “A torcida invadiu o campo, já tinha todo um esquema de fazer uma festa do clube com os torcedores, tinha trio elétrico lá na Fonte Nova, eles iam lá pro Bonfim. Quando eu soube da tragédia, estava no campo cobrindo a invasão do campo pela torcida, que estava eufórica”, comentou.

 

O fotógrafo relatou que o estádio foi evacuado e que ele ficou no portão da imprensa. “Me deu aquele tino de ver o que tinha acontecido e vi um pelotão de trinta soldados entrando em fila indiana rumo à arquibancada. Aí eu colei neles”. Após pedir permissão aos oficiais, Araújo fotografou o local da tragédia e o buraco na arquibancada. “Saí de lá e meu editor na época já estava ligando para meu celular perguntando ‘cadê as fotos’, fazendo aquela pressão, mandei as fotos pelo motorista do jornal, peguei o cartão de memória que estava usando, dei para ele”.

 

A imagem do buraco, cercado por corpos, virou manchete, mas antes disso, correu veloz pelas redes incipientes da época — blogs, fóruns e comunidades do Orkut. Foi uma tragédia que, além de ceifar vidas, marcou a transição de um jornalismo impresso e em telejornais para o digital.

Fotógrafo enviou o cartão de memória com as fotos para editor por motorista do jornal. (Welton Araújo/Agência A Tarde)

O repórter Nelson Barros Neto, que estava lá com um laptop no colo, encerrava a redação de uma reportagem sobre a partida para o jornal A Tarde quando começou a receber ligações da família. Torcedor do Bahia, todos achavam que ele estivesse entre os mortos. “Contornei a Fonte pela parte externa, vi ambulâncias, vi gritos… e entendi a proporção do que estava acontecendo. A alegria da subida virou uma dor coletiva.”

 

A cobertura do A Tarde, da qual Nelson fez parte, viria a ser indicada a prêmios nacionais. A edição impressa do dia seguinte ganhou destaque por seu rigor investigativo: entrevistas com sobreviventes, famílias, engenheiros, autoridades e uma memória de tragédias anteriores. Nelson relembra: “Nós já tínhamos publicado meses antes uma matéria chamada ‘Fonte Nova, velhos problemas’, denunciando a estrutura comprometida. Já havia setores interditados, laudos ignorados, e promessas de reforma para ‘após o campeonato’. A tragédia era anunciada”.

 

O jornalista ainda contou que ao chegar na redação foi alimentando matérias pro site do jornal A Tarde On-line. Ele relata que como não existia a possibilidade de subir as matérias do local onde estivesse, as informações ao serem publicadas já tinham um pouco o tom de ultrapassada. Mas, segundo ele, como o surgimento de portais online ainda era muito “tímido”, o texto do digital não era pensado muito diferentemente do texto impresso.

A limitação tecnológica se impunha: WhatsApp, Twitter e cobertura em tempo real ainda eram distantes da rotina jornalística. Mas, para Nelson, isso pode ter evitado uma tragédia ainda maior. “Se a notícia da morte de torcedores se espalhasse ali na hora, teria correria, pânico, pisoteamento. O acesso à informação, paradoxalmente, podia agravar a tragédia”, relatou Barros.

 

Se a cobertura da época foi marcada por improviso e urgência, repórteres se comunicavam com a redação através de SMS e telefonemas para passar cada informação em tempo real. Entre falhas do Estado, torcedores feridos e jornalistas tentando traduzir o caos em manchetes, nasceu uma nova forma de narrar o presente: mais ágil, mais conectada, mas também mais pressionada por instantaneidade e cliques.

 


Do concreto ao ciberespaço

A cobertura digital, ainda que rudimentar, foi determinante para que o caso ganhasse projeção nacional. O site da Folha de S. Paulo, na manhã do dia 26 de novembro, estampou a manchete “Arquibancada cai, e 7 morrem na Bahia” . Além da Folha, outros sites de jornais locais e nacionais, além de blogs, publicaram reportagem de todos os desdobramentos sobre a tragédia no estádio Octávio Mangabeira, atual Casa de Apostas Arena Fonte Nova.

 

O site do jornal Extra, no mesmo dia, trouxe a notícia sobre a maior tragédia do esporte baiano, com a manchete “Queda de arquibancada da Fonte Nova provoca maior tragédia do futebol brasileiro”. No quinto parágrafo, a reportagem, publicada no site do jornal, trouxe uma lista dos nomes das sete vítimas fatais: Márcia Santos Cruz, de 27 anos; Jadson Celestino Araújo Silva, 25; Milena Vasquez Palmeira, 27; Djalma Lima Santos, 31; Anísio Marques Neto, 27; Nidia Andrade Santos, 24; e Joselito Lima Jr, 26. A matéria continha fotos do isolamento da área onde os corpos estavam, disponibilizadas pelo jornal A Tarde.

 

Dois dias depois do acidente, o site Extra em sua editoria de Esporte trouxe uma matéria que apontava supostos responsáveis legais pela não observação dos problemas que eram apontados em laudos técnicos de vistorias feitas no estádio, com sua manchete: “Fonte Nova: uma tragédia que poderia ter sido evitada”. No segundo parágrafo da reportagem, o Ministério Público Estadual afirma que o estádio apresentava “piso irregular e sem revestimento, ferragens sem a devida proteção, tubulações em péssimo estado de conservação ou protegidas de modo incorreto, infiltrações e, consequentemente, umidade em várias partes”.

 

Uma matéria de Luiz Francisco, da Agência Folha, em Salvador, também do dia 27/11/2007, trazia um texto no qual o secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, Nilton Vasconcelos, assumia que tinha noção do problema existente na Fonte Nova. O secretário relatou para o repórter: “Sabíamos que havia trecho do concreto se soltando. Em janeiro deste ano, interditamos 75% do estádio. A liberação aconteceu depois do tratamento da ferragem exposta para controlar a corrosão. Várias medidas foram tomadas no período. Havia preocupação com a estrutura, mas nada que sugerisse uma tragédia dessa proporção”.

 

No mesmo dia, a Folha de S. Paulo em sua editoria de Esporte, publicou texto de um correspondente direto de Genebra para sucursal do Rio, onde trazia falas da Federação Internacional de Futebol (FIFA) sobre o acontecimento dois dias antes no estádio e a confirmação de que o incidente não traria prejuízo para a seleção do Brasil como país sede da copa do mundo de 2014. Foi neste mesmo texto que apareceram as primeiras citações sobre o destino do estádio que tinha sido interditado.

 

No terceiro parágrafo do texto, o então ministro do Esporte, Orlando Silva Jr., que visitou a Fonte Nova um dia antes, sugeriu implodir o que restou do estádio – o que aconteceria somente em 2010. Ainda nesta mesma matéria, que trazia a manchete: “Todos lamentam, porém garantem Copa no Brasil”, o ministro confirmou que o dinheiro público não seria disponibilizado para a construção de um novo estádio. Anos depois, a construção da nova Fonte Nova foi viabilizada por meio de parceria privada com a Cervejaria Itaipava.

 

Welton Araújo/Agência A Tarde

“Saí correndo de casa e fui andando de Brotas até a Fonte Nova, pois meu irmão e meu sobrinho estavam no jogo”, conta Edilu Maia, estudante de Produção Cultural, que acompanhava tudo pelo celular simples que recebia notícias por SMS. “Mas nesse dia, não veio nenhuma. Fui procurar informação nos sites, e a maioria ainda estava desatualizada. O Globoesporte.com, no dia seguinte, foi o que mais atualizou”.

 

Às 10h25 do dia 29 de agosto de 2010, o histórico Estádio Octávio Mangabeira, com quase sessenta anos de existência, foi implodido e desabou em apenas 17 segundos. Milhares de torcedores se reuniram ao redor do Dique do Tororó para presenciar esse momento simbólico e emocionante. A demolição foi uma resposta direta à tragédia de 2007, que matou sete pessoas e expôs a instabilidade estrutural do estádio.

 

Na época, o jornalismo digital estava mais desenvolvido e a implosão do estádio foi noticiada em tempo real. Portais como G1, Correio* e A Tarde Online veicularam vídeos, fotos, análises e até depoimentos de torcedores, levando o modelo multimídia a um novo patamar. O canal do Bahia Notícias no Youtube tem registrado o momento da implosão. Nelson Barros fez uma matéria para a Folha S. Paulo anunciando que a implosão do estádio que daria lugar à Itaipava Arena Fonte Nova levaria apenas 17 segundos e teria transmissão internacional pela National Geographic. Nas redes sociais, a hashtag #FonteNova virou trending topic local, revelando uma nova forma de consumir e produzir informação. O concreto virou pó, mas o impacto do momento continuou a se amplificar a cada clique e compartilhamento.

 

A implosão levou ao chão o que sobrou do estádio que foi manchete negativa nos meios digitais existentes na época, mas jamais pode desfazer o caminho ainda tímido mas sólido que a cobertura digital vinha construindo. Na questão da tragédia, as imagens e reportagens puderam ser vistas e comentadas através dos portais de notícias, blogs e ainda recém-lançadas redes sociais. A mudança do impresso para o digital permitiu que a notícia tivesse um outro tipo de apreciação. Antes folheadas, depois, a um clique de navegação.

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Gerônimo Santos, estudante de jornalismo, professor de teatro e mobilizador cultural.

 

Jamile Araújo, comunicadora popular, estudante de jornalismo,  atualmente é estagiária na Fiocruz Bahia.

 

A escolha da pauta se deu por ser um dos eventos mais marcantes do futebol brasileiro e estar dentro do marco temporal analisado dentro da nossa pesquisa.

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