O NORDESTeuSOU como mecanismo de fuga dos modelos tradicionais de produção de informação na periferia de Salvador
Anderson Luis (@anders0u), Anna Júlia Barbosa (@annaju.bs), Beatriz Fonseca (@_be.atrix) e Gabriel De Luca (@delucabp)
Criado em 2011, no Complexo Nordeste de Amaralina, em Salvador, o veículo jornalístico NORDESTeuSOU (NES) surgiu como resposta à ausência de cobertura da mídia tradicional nos bairros da Santa Cruz, Vale das Pedrinhas, Chapada do Rio Vermelho e o próprio Nordeste de Amaralina. O veículo hiperlocal é um exemplo do boom de iniciativas de jornalismo independente que ganharam força na década de 2010, explorando novos formatos digitais.
Entre 2010 e 2015, o jornalismo brasileiro viveu uma virada. A popularização da internet e a crise de sustentabilidade dos veículos impressos abriram espaço para um movimento de reconfiguração do fazer jornalístico, impulsionado tanto pelas tranformações tecnológicas quanto pelas mudanças de consumo do público. A atuação de veículos como esse é parte de um ecossistema que inclui nomes como CajaON (Cajazeiras), Cabula Notícias e Sussuarana Online.
Para a diretora executiva da Associação de Jornalismo Digital (AJOR), Maia Fortes, essas iniciativas compartilham desafios semelhantes: “A grande maioria dos veículos é formada por jornalistas e comunicadores que não têm informação voltada para ser liderança de um negócio, para desenvolver essa organização, para lidar com recursos humanos.”
Além do território, o que diferencia veículos independentes e comunitários é a forma do fazer jornalístico. No caso do Nexo Jornal, nativo digital fundado em 2015, a questão da visualização de dados, infografia e multimídia foram importantes para explorar uma nova forma de entregar a notícia. “Esse formato te instiga a pensar outras estruturas editoriais. É sobre como você organiza aquela notícia que você vai contar. O digital traz justamente a possibilidade de explorar mais essa intersecção entre forma e conteúdo e isso certamente estava ali no centro do nosso modelo editorial.”, conta Paula Miraglia, CEO da Momentum – Jornalism & Tech Task Force e cofundadora do Nexo Jornal e Gama Revista.
O NES
O NORDESTeuSOU, enquanto um nativo digital que dispõe de um site de notícias, também pode ser acessado pelo Instagram. Nesta rede social, que conta com mais de 114 mil seguidores, a população de mais de 80 mil pessoas dessa região pode acessar os conteúdos gerados pela iniciativa em formato de reels, cards e outros links que direcionam para a página do Youtube e o próprio site do veículo.
Os conteúdos gerados pelo NES na íntegra também consistem em retratar atividades de esporte, cultura, lazer e entretenimento da comunidade. Em busca de mudar o ângulo de visão perpetuado pela grande mídia em coberturas de acontecimentos dentro desse conjunto de bairros.
Sobre essas e outras pautas que respondem a uma demanda específica de um local, engatilhando o surgimento desses veículos que fogem do formato tradicional de produção de notícias, Miraglia cita o caso do Desterro, uma iniciativa que propoe um jornalismo independente e antirracista nas favelas de Florianópolis, idealizado por Gabriele Oliveira, Rodrigo Barbosa, Warley Alvarenga e Bruno Ruthe.
“É incrível que jornalistas tenham entendido que havia uma demanda, que não estava sendo atendida sobre a cobertura de regiões onde a violência policial era altíssima, e a mídia não estava com interesse em cobrir. Então, eu acho que isso muda completamente a conversa. Acho que aí é trazer visibilidade para temas que não necessariamente estão cobertos ou não geram interesse na mídia tradicional”, pontuou Miraglia.
O CEO do NORDESTeuSOU, Jefferson Borges, 34 anos, participou do 1º Encontro de Comunicação Antirracista na UFBA. A sua contribuição à mesa ocorreu no dia 04/06/25, no auditório da FACOM. Durante o evento promovido pelo Centro Acadêmico ele comentou sobre o atual processo de expansão do veículo para outros bairros periféricos de Salvador e a importância disso para essas novas localidades a serem cobertas.
Jefferson falou mais sobre o surgimento da iniciativa no complexo do Nordeste de Amaralina, a relação dela com os moradores e a importância da parceria com o Voz das Comunidades para a sua manutenção.
O “complexo” de Amaralina
O CEO do NES ainda fala sobre o termo “complexo” para se referir ao ecossistema de comunidades periféricas.
De acordo com o próprio NES, o Complexo de Amaralina possui cerca de 80 mil habitantes, formado pelos bairros de Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e Nordeste de Amaralina.
Os bairros se delimitam da seguinte forma:
Mapa: Complexo do Nordeste de Amaralina (Google My Maps/Reprodução)
A sustentabilidade
Uma das principais questões relacionadas à veículos hiperlocais, é como eles se mantém. A lógica do capital impõe demandas e obstáculos por vezes intransponíveis, mas o senso comunitário tende a prevalecer e os portais costumeiramente (mas não exclusivamente) viram espaços de divulgação para empresários das próprias comunidades.
Outro meio de captação é através de políticas públicas, que disponibilizam recursos capazes de manter equipes inteiras, como é o caso da NORDESTeuSOU:
“A AJOR sistematiza oportunidades que já existem. Então, acho que tem editais que são focados para iniciativas e empresas periféricas que podem beneficiar os veículos. A associação tem uma atuação mais superestrutural, que é de desenvolvimento de políticas focadas em organizações que viabilizam acesso à informação, que no fim é acesso a direito para a população.”, ressalta Maia Fortes, diretora da AJOR.
O mapa a seguir demonstra a realidade de veículos hiperlocais em Salvador:
Mapa: Veículos jornalísticos hiperlocais de Salvador (Google My Maps/Reprodução)
A recepção do público
Tereza Barbosa dos Santos, 67 anos, moradora do Nordeste de Amaralina, um dos bairros contemplados pela cobertura do NES, contou que costuma acessar o conteúdo gerado pelo veículo através das redes sociais. “Aqui não tinha esse meio de comunicação, mas agora é interessante porque eu me comunico através do Instagram deles. Eu entro pra ver as noticias com relação as coisas que acontecem aqui no bairro.”
Nascida e criada no nessa localidade, ela também destacou a importância do projeto comunitário em meio às grandes iniciativas já existentes em Salvador. “Eu consumo muito a Metrópoles, tenho um vínculo com eles onde toda semana recebo jornal pelo WhatsApp [Metrópole FM de Mário Kertész], mas o NORDESTeuSOU, além de fazer esse trabalho de reportagem eles acolhem muito a comunidade.”
Mas para além de retratar essas vivências, essa iniciativa comunitária também promove ações voltadas para os moradores do bairro, como relata dona Tereza. “Inclusive, o último feito deles que eu aplaudi bastante, onde através de comunicação com os vendedores e comerciantes do bairro, criaram um projeto para alimentar pessoas de baixa renda que não tem condições de ter uma alimentação adequada todos os dias na mesa.
Inclusive, eles criaram um espaço que é tipo uma lanchonete aqui no fim de linha do Nordeste onde eles servem um almoço pela manhã, e isso é maravilhoso.” O projeto “Cozinha Solidária” do NORDESTeuSOU que abriga o “Comida no Prato”, é uma iniciativa que garante a distribuição de 250 refeições diariamente no Complexo do Nordeste de Amaralina. E tem como alvo os moradores que estão cadastrados no sistema ou que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Entre o público que se beneficia com a disponibilização de alimentos no horário de almoço estão mães solo, pessoas desempregadas e em situação de rua.
Foto: Reprodução/NORDESTEeuSOU
Com orgulho, Jefferson Borges posa segurando a versão impressa do seu trabalho. De acordo com ele, é como uma materialização do seu sonho ao criar o portal, uma ferramenta para dar voz e enxergar a sua comunidade em toda a sua potência.
Anderson Luis é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA / Estagia no Aqui só Política / Pai de Shea
Anna Júlia é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA / Trabalha na Baiana FM e BNews SP / Mãe de Teodoro
Beatriz Fonseca é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA / Estagia no INAFF / Amante de Fotografia / Bon vivant
Gabriel De Luca é estudante de Jornalismo da FACOM | UFBA / Estagia na Rádio Sociedade da Bahia / Pai de Ônix Matuê / Torcedor do Vitória
Escolhemos falar sobre o NES e os portais independentes/comunitários por enxergamos a importância e impacto que esse tipo de jornalismo gera nas comunidades, subvertendo a lógica da mídia tradicional.